Que procede da tua formosura? Porqu'escondes a luz do sol á gente, Que nesses olhos trazes bella e pura? Mais pura, mais suave, mais formosa, Que lyrio, que jasmim, que cravo e rosa.
Póde ser, se me visses, que sentíras Ver liquidar hum peito em triste pranto; E bem pouco fizeras, se me víras, Pois eu só por te ver suspiro tanto: As mágoas, os suspiros, que m'ouvíras Te puderão mover a grande espanto, A dor, a piedade, o sentimento,
E a mais, que para mais he meu tormento.
Os pensamentos vãos, que o vento leve; O suspirar em vão tambem ao vento; Hum esperar á calma, á chuva, á neve, E nunca poder ver-te hum só momento; Tormento he, que sómente a ti se deve. E se póde inda haver maior tormento, Quem te vio, e se vê de ti ausente, Muito mais passará mais levemente.
Faz mossa a pedra dura em sua dureza Com a agua que lhe toca brandamente; Abranda o ferro forte a fortaleza, Se lhe toca tambem o fogo ardente: Em ti só desconheço a natureza; Que, a ser de pedra ou ferro totalmente, Ja teu peito cruel fôra desfeito
Das aguas e das chammas do meu peito.
Quando a formosa Aurora mostra a fronte, Alegra toda a terra, vendo o dia; Quando Phebo apparece no horizonte, Manifesta tambem grande alegria; Contente pasce o gado ao pé do monte, Contente a beber vai na fonte fria: Está tudo contente, alegre tudo; Eu só, só pensativo, triste e mudo.
Se ja d'alma e do corpo tens a palma, E do corpo sem alma não tens dó, Ha dó do corpo só, qu'está sem alma, Pois sem alma não vive o corpo só. Nas chammas e no ardor, no fogo e calma, Na affeição, no querer eu sou hum só: Não acharás vontade tão captiva: Nem outra como a tua tão esquiva.
Se te apartas por não ouvir meu rogo, Onde estiveres te hei d'importunar: Postoque vás por agua, ferro, ou fogo, Comtigo em toda parte m'has d'achar; Que o fogo em q ardo, e a agua em que m'affogo, Emquanto eu vivo for, hão de durar;
Pois o nó, que m'enlaça, he de tal sorte, Que não se ha de soltar em vida, ou morte.
Neste meu coração sempr'estarás, Emquanto a alma estiver com elle unida: Tambem o meu esprito possuirás Despois que a alma do corpo for partida. Por mais e mais que faças, não farás Que deixe o amar-te nesta e ess'outra vida:
Impossivel será qu'eternamente Ausente estês de mim, estando ausente.
Cá m'acompanhará vossa memoria, Se o rio, que se diz do esquecimento, Da minha não borrar tão longa historia, grave mal, tão duro apartamento. Até quando vos veja entrar na gloria, Viverei n'hum contino sentimento: E ainda então vereis (s'isto ser possa) Esta minh'alma lá servir a vossa.
Aqui com grave dor, com triste accento, Deo o triste pastor fim a seu canto: Co'o rosto baixo e alto o pensamento, Seus olhos começárão novo pranto: Mil vezes parar fez no ar o vento, E apiedou no Ceo o coro santo: As circumstantes sylvas s'inclinárão, Condoidas das mágoas qu'escutárão.
Com hua mão na face, reclinado, Tão enlevado em sua dor estava, Que, como em grave somno sepultado, Não via que ja o sol no mar entrava. Berrando andava em roda o manso gado, Que o seguro curral ja desejava: Nas covas as raposas, e em seus ninhos Se recolhem os simples passarinhos.
Ja sobre hum secco ramo estava posto O mocho com funesto e triste canto: Ao som delle o pastor ergueo o rosto,
E vio a terra envolta em negro manto. Quebrando então o fio de seu gosto, E o fio não quebrando de seu pranto, Por não se descuidar de seu cuidado, Levou para os curraes o manso gado.
A rustica contenda desusada
Entr'as Musas dos bosques, das areias, De seus rudos cultores modulada; A cujo som attonitas e alheias Do monte as brancas vaccas estiverão, E do rio as saxatiles lampreias;
Desejo de cantar. Que se movêrão Os troncos ás avenas dos pastores, E ja sylvestres brutos suspendêrão. Não menos o cantar dos pescadores As ondas amansou do fundo pégo, E fez ouvir os mudos nadadores.
E se por sustentar-se o moço cego Nos trabalhos agrestes a alma inflamma, que he mais proprio no ocio e no socego; Mais maravilhas dando á voz da fama,
No mesmo mar undoso e vento frio
Brazas roxas accende a rôxa flama.
Vós, ó ramo d'hum Tronco alto e sombrio,
Cuja frondente coma ja cobrio
De Luso todo o gado e senhorio;
E cujo são madeiro ja sahio A lançar a forçosa e larga rede No mais remoto mar que o mundo vio; E vós, cujo valor tão alto excede, Que, a canta-lo com voz alta e divina, A fonte do Parnaso move a sêde; Ouvi da minha humilde çanfonina A harmonia, que vós ja levantais Tanto, que de vós mesmo a fazeis dina. Mas se agora que affabil m'escutais, Não ouvirdes cantar com alta tuba 0 que vos deve o mundo, que dourais;
E se os Reis avós vossos, que de Juba Os Reinos debellárão, não ouvis Que nas azas do excelso verso suba;
Se não sabem as frautas pastoris Pintar de Toro os campos semeados D'armas è corpos fortes e gentis;
Por hum moço animoso sustentados, Contra o indomito Rei de toda Hespanha, Contra a fortuna vãa e injustos fados: Hum Moço, cujo esforço, brio e manha, Do Olympo fez descer o duro Marte, E dar-lhe a quinta esphera, que acompanha; Se não sabem cantar a menor parte Do sapiente peito e grão conselho, Que pôde, ó Reino illustre, descansar-te;
Peito, que ao douto Apollo faz, vermelho, Deixar o sacro Monte e as nove Irmãas, Porque a elle se affeitem como a espelho; Saberão bem cantar, em nada vãas, D'Alicuto as contendas e d'Agrario; Hum d'escamas coberto, outro de laas.
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