UMBRANO, FRONDELIO E AONIA
Que grande variedade vão fazendo, Frondelio amigo, as horas apressadas! Como se vão as cousas convertendo Em outras cousas várias e insperadas! Hum dia a outro dia vai trazendo Por suas mesmas horas ja ordenadas; Mas quão conformes são na quantidade, Tão differentes são na qualidade.
Eu vi ja deste campo as várias flores Ás estrellas do Ceo fazendo inveja; Adornados andar vi os pastores De quanto por o mundo se desejà; E vi co'o campo competir nas côres Os trajes, de obra tanta e tão sobeja, Que se a rica materia não faltava. A obra de mais rica sobejava.
E vi perder seu preço ás brancas rosas, E quasi escurecer-se o claro dia Diante de huas mostras perigosas, Que Venus mais que nunca engrandecia. As pastoras, emfim, vi tão formosas, Que o Amor de si mesmo se temia; Mas mais temia o pensamento falto De não ser para ter temor tão alto.
Agora tudo está tão differente,
Que move os corações a grande espanio; E parece que Jupiter potente
Se enfada ja d'o mundo durar tanto. O Tejo corre turvo e descontente, As aves deixão seu suave canto, E o gado, inda que a herva lhe fallece, Mais que da falta della se emmagrece.
Umbrano irmão, decreto he da natura, Inviolavel, fixo e sempiterno,
Que a todo bem succeda desventura, E não haja prazer que seja eterno: Ao claro dia segue a noite escura, Ao suave verão o duro inverno: E se ha cousa que saiba ter firmeza, He sómente esta lei da natureza.
Toda alegria grande e sumptuosa A porta abrindo vem ao triste estado: Se hum'hora vejo alegre e deleitosa, Temendo estou do mal apparelhado.
Não vès que mora a serpe venenosa Entre as flores do fresco e verde prado? Ah! não te engane algum contentamento; Que mais instavel he que o pensamento."
E praza a Deos que o triste e duro fado De tamanhos desastres se contente; Que sempre hum grande mal inopinado He mais do que o espera a incauta gente: Que vejo este carvalho que queimado Tão gravemente foi do raio ardente. Não seja ora prodigio que
Que o barbaro cultor meus campos are.
Em quanto do seguro azambujeiro Nos pastores de Luso houver cajados, Com o valor antiguo, que primeiro Os fez no mundo tão assinalados, Não temas tu, Frondelio companheiro, Qu'em algum tempo sejão sobjugados. Nem que a cerviz indomita obedeça A outro jugo qualquer que se lhe off'reça.
E postoque a soberba se levante De inimigos a torto e a direito, Não creas tu que a força repugnante Do fero e nunca ja vencido peito, Que desde quem possue o monte Atlante Adonde bebe o Hydaspe tee sujeito. 0 possa nunca ser de força alheia, Em quanto o sol, a terra e o ceo rodeia.
Umbrano, a temeraria segurança
Qu'em força, ou em razão não se assegura, He falsa e vãa; que a grande confiança Não he sempre ajudada da ventura. Que lá junto das aras da esperança, Némesis moderada, justa e dura, Hum freio lhe está pondo e lei terribil, Que os limites não passe do possibil.
E se attentares bem os grandes danos Que se nos vão mostrando cada dia, Porás freio tambem a esses enganos Que te está figurando a ousadia. Tu não vês como os lobos Tingitanos, Apartados de toda cobardia, Mátão os cães do gado guardadores, E não sómente os cães, mas os pastores?
Pois o grande curral, seguro e forte, Do alto monte Atlas não ouviste Que com sanguinolenta e fera morte Despovoado foi por caso triste?
Oh triste caso! oh desastrada sorte, Contra quem força humana não resiste! Que alli tambem da vida foi privado O meu Tionio, ainda em flôr cortado!
Em lagrimas me banha rosto e peito Desse caso terrivel a memoria..
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