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Natercia que ao mundo foi o lume,
De fermosura tal que usurpado
Tinha quasi ao amor o seu costume:

Natercia, por quem ando rodeado
De tanto mal, que só a morte dura
Espero que de fim a meu cuidado;

Ja não amostrará aquella fermosura,
Com que alegrar sohia toda a terra;
E fazia contente a noute escura.

Aos pastores ja não fará guerra.

MS. de Luiz Franco.

Guerra em que o damno mais cruel s'encerra.
Ja de vê-la não tenhas esperança.

Guerra em que maior dano s'encerra.
Ja de vella he perdida a esperança.

MS. de Luiz Franco.

E a causa vés aqui de que a alvorada
Visses desta manhãa tão differente
De outra qualquer, de ti mais ponderada.
Dizer-te o mais não posso, porque sente
Est'alma no que disse tal tormento,
Qu'esta memoria apenas me consente.

E por esta razão esta alvorada

Das outras que passárão differente
Vêdes, de sinais tristes rodeada.

Não me atrevo a dizer-te mais, que sente

Alma, ha no que digo tal tormento,

Que quasi esta memoria não consente.

MS. de Luiz Franco.

Segue depois no manuscripto:

Sylvano

Se a mim não engana o entendimento
Natercia deste mundo he partida;
Dize-me se verdade ou fingimento.

Soliso

Não queiras renovar-me esta ferida;
Natercia he morta! Ceo tão endurecido
Que me dura sem ella a triste vida.

Em seguida continua Sylvano:

TOMO III

Oh mundo! qual he aquelle tão perdido,
Qu'em ti cré, qual aquelle tão insano,
Vendo-te todo em damno instituido?

Ó mundo cruel e triste, quam perdido
Anda o que em tuas mostras se confia,
E a quanta desventura offerecido?

MS. de Luiz Franco

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Continua no manuscripto este terceto:

() teu contentamento e alegria,
O teu bem que dás pera mór dano,
Que são senão de males huma guia?

Porque, com nosso opprobrio e tua gloria,
Nos faças mais patente o teu engano.
Sempre assi vai comligo a mór victoria.

Porque, com maior mal nosso e tua gloria,
Venhas a declarar-nos teu engano.
Assim comtigo vai sempre a victoria.

MS. de Luiz Franco.

D'hum possuido bem triste memoria.
Quem faz de ti alguma confiança,
Sabendo ja que quem de ti confia,
D'hum engano penoso em fim s'alcança.

Do bem que nos roubaste a memoria.
Perdida he em ti toda a confiança,
Que só de falsidade e enganos,

Se deve ter em ti certa esperança.

Entre este ultimo verso,

é o verso:

MS. de Luiz Franco.

D'hum engano penoso emfim s'alcança,
Deixae, deixae, pastores, a verdura;

se lêem no manuscripto os seguintes versos:

Quem cuidára que huns fão tenros annos
E huma tal claridade, que excedia,
Quanto podem cuidar peitos humanos,
E aquelle olhar brando que fazia
Ao mesmo Amor guerra livremente
Podesse perecer em algum dia!

Qual he o peito duro que isto sente
Que queira vida mais, pois morta he aquella
Que fazia o viver ledo e contente?
Morta he ja aquella vista bella
Que alegrar a tristeza bem podera
E a quem não a tem tambem trazella.
Ah morte! morte dura e fera!

Como não te movia buma beldade.

Que até as duras pedras commovêra!

Como não te moveo huma tenra idade,

Como não te moveo a sorte dura

Dos que agora sentem sua saudade!

Deixae, deixae, pastores, a verdura;
As frautas deixae ja, e os mansos gados;
E chorae todos vossa desventura.

Deixai, tristes pastores, a verdura;
Deixai as frautas ja, e os mansos gados;
E vinde chorar vossa desventura.

MS. de Luiz Franco.

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E de vós agua saia em mal tão forte,
Pois de vê-lo tambem o monte chora.
Oh Napeas! chorae a triste sorte
Dos miseros pastores, a quem nega
O fado por mais pena o mortal corte.

Oh! Dryas! vós, a quem Amor s'entrega,
Tomae todo o cuidado deste pranto,
Pois sabeis onde a causa delle chega.

Vinde chorar comigo hum mal tão forte,
Que até o duro monte tambem o chora
Ó Nymphas! chorai a triste sorte
Dos coitados pastores, a quem nega
Amor para maior mal a triste morte.

Ó Driades! a quem Amor s'entrega,
A vós dou o cuidado deste pranto,
Pois sabeis este mal onde nos chega.

MS. de Luiz Franco.

Pois deixa a Philomella o doce canto.
E vós, ó vida minha, pois curar-me
Ja não podeis, deixae-me juntamente,
Porque lembranças taes possão deixar-me.
Mas se dellas morreis, morro cóntente.

Pois deixa a Philomella o alegre canto.
Que pois não podeis remediar-me
Vinde deixar-me, porque juntamente,
Lembranças deste mal possa deixar-me.
Que em quanto vos tiver, terei presente.

MS. de Luiz Franco.

EGLOGA XVI

Sendo, como indubitavelmente é, de Camões, na minha opinião, a egloga xiv, esta, escripta no mesmo local e no mesmo estylo, é igualmente sua; e, como de um mesmo auctor, estava junta no manuscripto d'onde copiou o professor Antonio Lourenço Caminha.

Ergasto nas ribeiras do Tejo, em uma area coroada de rochas, vem desafogar contra a ingratidão de Galathea, que não mostrou a mais pequena saudade pela sua ausencia, e lhe esqueceu o amor antigo; pragueja contra ella, mas termina desejando-lhe mil venturas e que só elle seja o desgraçado. Estes versos

Tanto segredo alegre, tanta festa,
Tanta conversação, sem prejuizo,
Em que passaste ja comigo a sesta.
As historias, as praticas de rizo,
As dissimulações por poder ver-te,
Aquellas zombarias tão de cizo.

apresentam muita similhança com est'outros da egloga :

E como te não lembras do perigo,
A que só por m'ouvir t'aventuravas,
Buscando horas de sesta, horas d'abrigo?
Co'a maçãa da discordia me tiravas;
Qu'a Venus, qu'a ganhou por formosura,
Tu, como mais formosa, lha ganhavas.
E escondendo-te logo na'spessura,
Hias fugindo, como vergonhosa

Da namorada e doce travessura.

Pelos seguintes versos parece que, quando escreveu esta poesja, reinava já o pensamento de se passar á India:

Buscarei com meu gado estranha terra,
Habitarei onde outro sol mais arde,

Ou onde a neve tem cuberta a serra.

ELEGIA I

Esta elegia refere-se ao degredo do Ribatejo. Compara-se n'ella a Ovidio, que, desterrado no deserto do Ponto, mitigava a aspereza do exilio com a sua Musa. A aridez da terra onde o poeta latino vegetava entre barbaros uma vida solitaria, longe da patria e das mais caras raizes que prendem o homem á terra, não tem analogia com essas encantadoras e vecejantes margens do nosso Tejo, que mais de uma vez tenho percorrido; mas quem não sabe que a saudade póde tornar os logares mais apraziveis em aridos e escabrosos, converter as flores ein abrolhos? E assim acontecia ao Poeta:

Não vejo senão montes pedregosos;

E sem graça e sem flor os campos vejo,
Que ja floridos víra, e graciosos.

Camões nos pinta a vida que levava n'estes sitios: ao romper do dia ía-se com passo carregado a um outeiro, e ahi se sentava entregando-se as suas reflexões amorosas, e vendo os barcos que desciam o rio, se dirigia ás aguas d'elle,

pedindo-lhes que levassem de mistura as suas lagrimas á parte onde iam, até que elle podesse ir onde ellas chegavam. Mas não pode tantò bem chegar tão cedo, porque primeiro se lhe acabará a vida do que se acabe tão aspero degredo. Nem com a mesma morte se poderá extinguir a memoria dos seus amores; emquanto porém esta não vem cevará a sua imaginação com a gloria possuida, até que surja o dia tão desejado que ponha termo a este degredo ou o consuma a mesina morte. Temos n'esta poesia a notar duas cousas: uma, a certeza do degredo, e a outra a injustiça d'elle.

Dest'arte me figura a phantasia

A vida com que morro, desterrado, etc.

Não póde tanto bem chegar tão cedo;
Porque primeiro a vida acabará,
Que se acabe tão aspero degredo.

Á injustiça do degredo se refere n'estés versos:

Aqui me representa esta lembrança
Quão pouca culpa tenho; e m'entristece
Ver sem rasão a pena que m'alcança.

Aos montes ja, ja aos rios se queixava.
Aos montes e ás agoas se queixava.

Edição de 1595.

Aos montes, ás altas agoas se queixava.

MS. de Luiz Franco.

E aquella ordem com que discorria.
E como por sua ordem discorria.

Edição de 1595 e MS. de Luiz Franco.
O ceo e o ar, e a terra adonde estava.
O ceo, o ar e a terra adonde estava.
Os peixes por o mar nadando via.
Os peixes pelo mar nadando via.

Edição de 1595.

Edição de 1595 e MS. de Luiz Franco.

As feras por o monte procedendo.
As feras pelo monte procedendo.

Edição de 1595.

Nos soidosos versos qu'escrevia,
E nos lamentos com que o campo banha.
Dest'arte me figura à phantasia.

Nos versos saudosos que escrevia,
E lagrimas com que alli o campo banha.
Dest'arte me afigura a fantesia.

Edição de 1595 e MS. de Luiz Franco.

A vida com que morro, desterrado.

A vida com que vivo, desterrado.

MS. de Luiz Franco.

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