Oh vida humana, vã, caduca e breve! Oh gloria della, ou falsa, ou imperfeita! Que a que mais dura, he qual hum somno leve, E as mudanças do tempo em fim sujeita! Quem mais conta fez della, e em mais a teve, Com mór dor e tristeza a vio desfeita; Passa, e seu fim remata em pranto e mágoa, Enchendo, como o fumo, os olhos d'ágoa.
Em que parou da terra o mór tyranno? Com próspera fortuna, ou com adversa,
que parou o grão sceptro Romano? Em que o Grego, o Medo, o Assyrio, o Persa? D'huma hora incerta hum certo desengano, Daquella hora final, dura e perversa, Triste e odiosa a todos, tudo enterra Em muito esquecimento e pouca terra.
Na antiga idade d'ouro, em que avondança Laüdavel da terra florecia,
que a segura e util temperança
Nos homens e elementos mais havia: Dos innumeros annos a abastança
A muitos pouca e breve parecia, Que o calado ladrão, que a todos furta, A longa vida faz parecer curta.
Quem vive por viver só nesta vida Docemente, no fim chorosa e amarga, que do Céo lhe seja concedida
Que a de Mathusalem muito mais larga; Que mais faz, que na miséra partida, Em que ha de ir nú e só, levar mór carga? Mas quem sómente aspira á eterna e santa, Pera ella alegre e leve se levanta.
Levanta-se a alma leve á mór altura, Do seu carcere amigo desatada, Ou das obras levada clara e pura, Ou a prisão perpetua condemnada: Toda a inferior cousa e creatura De materia e de fórma fabricada, Por mais que viva, em fim seu fim espera, Que assim o quiz quem fez a grande esphera.
Mas nunca a ninguem basta esta certeza, Pera que a dura Parca inexoravel Espanto lhe não cause, dor, tristeza Com seu golpe cruel e irreparavel. Assim vendo eu da bella fortaleza A miseravel quéda, em que duravel Sabía não ser nada, entristeceo-me, E cousa estranha e grave pareceo-me.
Nem sonhava eu que via desfazer-se Com supita ruína este edificio, Mas
que por tempo o via envelhecer-se, Cada parte cessando em seu officio: E o bom governo e economia perder-se, Faltando a ordem certa e são exercicio,
Não servindo os vassallos a senhora,
ella triste se saía fóra.
por mal obedecida,
E tambem porque mal obedecêra
Ao grão Senhor, que a esta envelhecida
Casa sua a mandára, e vir fizera:
Triste se ía. confusa e arrependida
Do máo viver; mas mais viver quizera Na antiga ainda e clara morada, Que só por terra jaz desamparada.
Fazendo mal os grandes e os menores Da torre seu serviço e regimento, Nem mandando os mórdomos e veadores A cada hum seu devido provimento: Veio o commum manjar com seus licores Todos quatro a um tal corrompimento, Que as partes principaes, e as outras logo Enfraquecerão, e s'esfriou seu fogo.
Porque daqui nasceo, que consumindo Se foi o mestre da obra2 diligente, E com elle de mal em peor indo Os capitães3 da torre, e a outra gente: Em tudo os servidores mal servindo, Os de dentro e os de fóra juntamente, Em todos s'enxergava huma frieza D'estranha, enferma e misera fraqueza.
Os mais dos trinta e dous brancos moleiros," Que estavão no moínho, se, saírão,
Debilitados ja, como os primeiros,
E sem poder moer, fóra caíão: Outros sem seu vigor (inda que inteiros Ficavão) por fraqueza não servião;
por 'starem alli mais arreigados, Como velhos ficavão aposentados.
Envelhecendo assim tanto o edificio, De fóra a graça e lustre ía mudando, E até do chapitéo e frontispicio Murchas as flores se íão descórando; Porque ja não lhe sendo tão propicio O calor e alimento, como quando Em seu vigor e perfeição estavão, Em fria e branca a côr d'ouro tornavão.
Aquelles dous robustos e valentes Carreteiros cançadamente andavão, E ja mui frouxamente e negligentes O necessario á torre acarretavão: Tambem os dez criados diligentes, Como tolhidos, mal se meneavão; E ja as columnas grossas, que trazião sobre si, fracas tremião.
Com tal fraqueza e continos tremores Ameaça a torre a final quéda; Estavão sem repouso os veadores, E toda a gente fraca e pouco léda: Da salva a mestra ja deixa os sabores, E cada hum de seu cargo ja se arreda; Arruinado por mil partes o muro, Abalado se mostra e mal seguro.
Em tal extremo vendo a fortaleza, Vigilante e sollicita acodia
A todas partes a immortal princeza,'
Sempre animando a toda a companhia: Com quanto via ja sua defesa
Ser tão fraca, deixa-la não queria;
Todo o raro remedio e exquisito
Procura em vão ao forte, fraco e afflicto.
Nesta ultima agonia pois estando A desconfortadissima senhora, Eu tambem, triste assás, via sonhando Desforme hum velho" e feio vir de fóra, Sumida a carne, os ossos só mostrando, Do carcomido rosto os olhos fóra, D'espantosa e terrivel catadura,
Fraca a voz, mas soberba, e com soltura.
O qual as mãos lançando descarnadas E torpes sobre este edificio enfermo, Deu-lhe hum medonho abalo, e alteradas Tremendo as partes, nelle fez grão termo. Traz isto, com palavras mui pesadas Á princeza fallando, disse: O termo
Final, e triste, e a tua hora he chegada;
Sáe-te ja da caduca e vã morada.»
Ficou sobresaltada e temerosa
A princeza com voz tão grave e horrenda. Mas inda assim lhe respondeo chorosą:
Espera-me algum tempo pera emenda
Minha, e desta morada perigosa;
E o prazo final mais se nos estenda :
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