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CANTO III

Oh vida humana, vã, caduca e breve!
Oh gloria della, ou falsa, ou imperfeita!
Que a que mais dura, he qual hum somno leve,
E as mudanças do tempo em fim sujeita!
Quem mais conta fez della, e em mais a teve,
Com mór dor e tristeza a vio desfeita;
Passa, e seu fim remata em pranto e mágoa,
Enchendo, como o fumo, os olhos d'ágoa.

Em que parou da terra o mór tyranno?
Com próspera fortuna, ou com adversa,

Em

que parou o grão sceptro Romano? Em que o Grego, o Medo, o Assyrio, o Persa? D'huma hora incerta hum certo desengano, Daquella hora final, dura e perversa, Triste e odiosa a todos, tudo enterra Em muito esquecimento e pouca terra.

Na antiga idade d'ouro, em que avondança
Laüdavel da terra florecia,

. Em

que a segura e util temperança

Nos homens e elementos mais havia:
Dos innumeros annos a abastança

A muitos pouca e breve parecia,
Que o calado ladrão, que a todos furta,
A longa vida faz parecer curta.

Quem vive por viver só nesta vida Docemente, no fim chorosa e amarga, que do Céo lhe seja concedida

Bem

Que a de Mathusalem muito mais larga;
Que mais faz, que na miséra partida,
Em que ha de ir nú e só, levar mór carga?
Mas quem sómente aspira á eterna e santa,
Pera ella alegre e leve se levanta.

Levanta-se a alma leve á mór altura,
Do seu carcere amigo desatada,
Ou das obras levada clara e pura,
Ou a prisão perpetua condemnada:
Toda a inferior cousa e creatura
De materia e de fórma fabricada,
Por mais que viva, em fim seu fim espera,
Que assim o quiz quem fez a grande esphera.

Mas nunca a ninguem basta esta certeza,
Pera que a dura Parca inexoravel
Espanto lhe não cause, dor, tristeza
Com seu golpe cruel e irreparavel.
Assim vendo eu da bella fortaleza
A miseravel quéda, em que duravel
Sabía não ser nada, entristeceo-me,
E cousa estranha e grave pareceo-me.

Nem sonhava eu que via desfazer-se
Com supita ruína este edificio,
Mas

que por tempo o via envelhecer-se,
Cada parte cessando em seu officio:
E o bom governo e economia perder-se,
Faltando a ordem certa e são exercicio,

TOMO III

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Não servindo os vassallos a senhora,

que

ella triste se saía fóra.

Triste se ía

por mal obedecida,

E tambem porque mal obedecêra

Ao grão Senhor, que a esta envelhecida

Casa sua a mandára, e vir fizera:

Triste se ía. confusa e arrependida

Do máo viver; mas mais viver quizera
Na antiga ainda e clara morada,
Que só por terra jaz desamparada.

Fazendo mal os grandes e os menores
Da torre seu serviço e regimento,
Nem mandando os mórdomos e veadores
A cada hum seu devido provimento:
Veio o commum manjar com seus licores
Todos quatro a um tal corrompimento,
Que as partes principaes, e as outras logo
Enfraquecerão, e s'esfriou seu fogo.

Porque daqui nasceo, que consumindo
Se foi o mestre da obra2 diligente,
E com elle de mal em peor indo
Os capitães3 da torre, e a outra gente:
Em tudo os servidores mal servindo,
Os de dentro e os de fóra juntamente,
Em todos s'enxergava huma frieza
D'estranha, enferma e misera fraqueza.

Os mais dos trinta e dous brancos moleiros," Que estavão no moínho, se, saírão,

Debilitados ja, como os primeiros,

E sem poder moer, fóra caíão:
Outros sem seu vigor (inda que inteiros
Ficavão) por fraqueza não servião;

E

por 'starem alli mais arreigados, Como velhos ficavão aposentados.

Envelhecendo assim tanto o edificio,
De fóra a graça e lustre ía mudando,
E até do chapitéo e frontispicio
Murchas as flores se íão descórando;
Porque ja não lhe sendo tão propicio
O calor e alimento, como quando
Em seu vigor e perfeição estavão,
Em fria e branca a côr d'ouro tornavão.

6

Aquelles dous robustos e valentes
Carreteiros cançadamente andavão,
E ja mui frouxamente e negligentes
O necessario á torre acarretavão:
Tambem os dez criados diligentes,
Como tolhidos, mal se meneavão;
E ja as columnas grossas, que trazião
sobre si, fracas tremião.

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Com tal fraqueza e continos tremores
Ameaça a torre a final quéda;
Estavão sem repouso os veadores,
E toda a gente fraca e pouco léda:
Da salva a mestra ja deixa os sabores,
E cada hum de seu cargo ja se arreda;
Arruinado por mil partes o muro,
Abalado se mostra e mal seguro.

Em tal extremo vendo a fortaleza,
Vigilante e sollicita acodia

A todas partes a immortal princeza,'

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Sempre animando a toda a companhia:
Com quanto via ja sua defesa

Ser tão fraca, deixa-la não queria;

Todo o raro remedio e exquisito

Procura em vão ao forte, fraco e afflicto.

Nesta ultima agonia pois estando
A desconfortadissima senhora,
Eu tambem, triste assás, via sonhando
Desforme hum velho" e feio vir de fóra,
Sumida a carne, os ossos só mostrando,
Do carcomido rosto os olhos fóra,
D'espantosa e terrivel catadura,

Fraca a voz, mas soberba, e com soltura.

O qual as mãos lançando descarnadas
E torpes sobre este edificio enfermo,
Deu-lhe hum medonho abalo, e alteradas
Tremendo as partes, nelle fez grão termo.
Traz isto, com palavras mui pesadas
Á princeza fallando, disse: O termo

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Final, e triste, e a tua hora he chegada;

Sáe-te ja da caduca e vã morada.»

Ficou sobresaltada e temerosa

A princeza com voz tão grave e horrenda. Mas inda assim lhe respondeo chorosą:

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Espera-me algum tempo pera emenda

Minha, e desta morada perigosa;

E o prazo final mais se nos estenda :

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