Altas obras, soberbas e arrogantes D'espantosa e subtil architectura
Houve em tempo passado; outras galantes De pincel, perspectiva e d'esculptura: Mil illustres varões, como Timanthes, Protogenes, Polycles na pintura,
Hum Phidias, hum Lysippo, hum Praxiteles, Zeuxis, Parrhasio, e o celebrado Apelles.
Dedalo o labyrintho embaraçado, E Semiramis fez muro espantoso, Chares colosso em Rhodes sublimado, Fez-se em Epheso o templo sumptuoso: Fez ao marido seu Mausolo amado Artemisa sepulcro alto e honroso; Theatros houve, e grandes edificios, E de maravilhosos artificios.
Mas como feitos são por mão humana, Não podem dilatar-se em infinito: Por terra jaz o templo de Diana, E jazem as pyramides do Egypto; Mil columnas d'antiga obra romana, Arcos, estatuas d'alto e vivo esp'rito, . O tempo, que consume e tudo aterra, Os tem desfeitos ja posto por terra.
Mas aquella symetria compassada E sobrenatural proporção viva, Em que não póde o tempo ter alçada, Do corpo humano e architectura altiva, De idade a idade a vemos propagada, Por a fazer perpetua, e que reviva, Aquella mão divina lá de cima,
Que a fez de nada, e lhe deu ser e estima.
Os philosophos grandes com sciencia E incançavel industria, que alcançárão Das cousas naturaes a propria essencia, E todas altamente especulárão, Nenhuma de mais alta arte e excellencia Entre todas, que o corpo humano, achárão, De fórma e de materia um só composto, Com tamanho primor feito e composto.
Mas tornando a meu sonho, que contente Me tinha, desejando eu ver de perto O mais da fortaleza alta e excellente, Que por dentro me estava inda encoberto, Não sei como assim logo estranhamente Me foi tudo mostrado e descoberto, Como eu parte por parte aqui contára, Se me a fraca memoria não faltára.
Estava a fortaleza repartida Assim toda por riba em tres sobrados,' Ou tres principaes quartos, e cingida Por de fóra de muros bem lavrados: Corrião-se estes quartos com medida E justa proporção mui compassados,
E tinha cada hum delles seu mordomo,2 Ou veador de grande cargo e tomo.
E querendo olhar eu logo o do meio," Por lhe ver mais estado, ricamente De tudo ataviado, ornado e cheio, Parecendo mancebo ainda e valente; Maravilhou-me ver hum bom meneio E movimento seu continuamente, E com muito ar, sem ser força ou defeito, Mas de seu natural. um dom perfeito.
Dava-lhe grande auctoridade e brio Hum tabardo de mangas, que vestia, Com que mostrava mando e senhorio Em toda a gente, que na torre havia: E por seu aposento ser d'estio E muito quente, sempre se servia De muitos pagens' seus, que o abanavão, E d'ar sereno e frio o refrescavão.
Por estar n'uma estufa. muito quente Movendo-se contino, assim convinha, Pera o qual d'obra o mestre diligente Bem junto delle dous abanos" tinha; Aos quaes ar frio e incessantemente
pera refrigerio seu lhe vinha,
Por huns canos de fóra o admittindo, O mais quente e fumoso despedindo.
Desta estufa era sempre bem provida E sustentada toda a fortaleza,
Por seus canos lhe dando esp'rito e vida,
E de seu vivo fogo a tendo accesa: Pera este fim n'ua casa alli escondida Com promptidão estava e com viveza O subtil mestre da obra, que servia D'accender este fogo, e o repartia.
E como esta grã fabrica e estranha obra Nos aposentos tres se dividia,
Como mais principaes, o mestres d'obra Por todos providente discorria, Fazendo sempre importantissima obra Em todo o edificio e companhia; E em que neste do meio mais morava, Nos outros dous, mudando o nome, andava.
Mas com mover-se sempre, e com grã calma, O mordomo, que disse, valeroso, Sujeito estava aos accidentes da alma,' Ora ledo, ora triste, ora medroso:
Outr'ora a ira, que tanto accende e encalma, O dominava, outr'ora vergonhoso, Com esperança, e sem 'sperança outr'ora, Se alterava e mudava cada hora.
Que com conhecimento falso, ou certo, As cousas, que de fóra procedião, 10 Ao mestre d'obra, sempre vivo e experto, Deste seu aposento commovião: Fazendo-o estar as tristes encoberto, Por toda a torre as ledas o trazião Com tanta variação, que de tal ver-se Estava a risco ás vezes de perder-se.
Mas como tinha, a fim de recrear-se, Este rico mordomo os dous abanos, Tambem delles soía aproveitar-se
N'outros serviços seus por outros canos; Porque no meio delles vi formar-se Huma frauta coberta de dous pannos, Que até o entrar na torre ía direita, Fazendo varia musica e perfeita.
Huma porta subtil estava obrada, E no fim della uma cabeça ou chave,12 Que dos pagens e d'outros bem tocada Causava esta harmonia tão suave; E no tom, que querião, temperada, Soava ou alto ou baixo, ou agudo ou grave, Com que gosto e proveito recebia
O veador e toda a companhia.
Tinha fortificado a este aposento E reparado em rodå um forte muro,13 E da parte de fóra em bom assento
Duas fontes n'um quasi contra-muro,
Que, trazendo de dentro o nascimento, O fazião ornado e mais seguro; Mas estas duas fontes parecião Estar seccas 15 então, e não corríão.
Despois d'eu visto ter parte por parte Desta casa do meio a fórma bella, A fabrica, o concerto, a ordem e arte, A providencia e bom serviço della; Como se alimentava cada parte De toda a fortaleza, assim por ella
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