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CANTO II

Altas obras, soberbas e arrogantes
D'espantosa e subtil architectura

Houve em tempo passado; outras galantes
De pincel, perspectiva e d'esculptura:
Mil illustres varões, como Timanthes,
Protogenes, Polycles na pintura,

Hum Phidias, hum Lysippo, hum Praxiteles,
Zeuxis, Parrhasio, e o celebrado Apelles.

Dedalo o labyrintho embaraçado,
E Semiramis fez muro espantoso,
Chares colosso em Rhodes sublimado,
Fez-se em Epheso o templo sumptuoso:
Fez ao marido seu Mausolo amado
Artemisa sepulcro alto e honroso;
Theatros houve, e grandes edificios,
E de maravilhosos artificios.

Mas como feitos são por mão humana,
Não podem dilatar-se em infinito:
Por terra jaz o templo de Diana,
E jazem as pyramides do Egypto;
Mil columnas d'antiga obra romana,
Arcos, estatuas d'alto e vivo esp'rito, .
O tempo, que consume e tudo aterra,
Os tem desfeitos ja posto por terra.

Mas aquella symetria compassada
E sobrenatural proporção viva,
Em que não póde o tempo ter alçada,
Do corpo humano e architectura altiva,
De idade a idade a vemos propagada,
Por a fazer perpetua, e que reviva,
Aquella mão divina lá de cima,

Que a fez de nada, e lhe deu ser e estima.

Os philosophos grandes com sciencia
E incançavel industria, que alcançárão
Das cousas naturaes a propria essencia,
E todas altamente especulárão,
Nenhuma de mais alta arte e excellencia
Entre todas, que o corpo humano, achárão,
De fórma e de materia um só composto,
Com tamanho primor feito e composto.

Mas tornando a meu sonho, que contente
Me tinha, desejando eu ver de perto
O mais da fortaleza alta e excellente,
Que por dentro me estava inda encoberto,
Não sei como assim logo estranhamente
Me foi tudo mostrado e descoberto,
Como eu parte por parte aqui contára,
Se me a fraca memoria não faltára.

Estava a fortaleza repartida
Assim toda por riba em tres sobrados,'
Ou tres principaes quartos, e cingida
Por de fóra de muros bem lavrados:
Corrião-se estes quartos com medida
E justa proporção mui compassados,

E tinha cada hum delles seu mordomo,2 Ou veador de grande cargo e tomo.

E querendo olhar eu logo o do meio,"
Por lhe ver mais estado, ricamente
De tudo ataviado, ornado e cheio,
Parecendo mancebo ainda e valente;
Maravilhou-me ver hum bom meneio
E movimento seu continuamente,
E com muito ar, sem ser força ou defeito,
Mas de seu natural. um dom perfeito.

Dava-lhe grande auctoridade e brio
Hum tabardo de mangas, que vestia,
Com que mostrava mando e senhorio
Em toda a gente, que na torre havia:
E por seu aposento ser d'estio
E muito quente, sempre se servia
De muitos pagens' seus, que o abanavão,
E d'ar sereno e frio o refrescavão.

Por estar n'uma estufa. muito quente
Movendo-se contino, assim convinha,
Pera o qual d'obra o mestre diligente
Bem junto delle dous abanos" tinha;
Aos quaes ar frio e incessantemente

E

pera refrigerio seu lhe vinha,

Por huns canos de fóra o admittindo,
O mais quente e fumoso despedindo.

Desta estufa era sempre bem provida
E sustentada toda a fortaleza,

Por seus canos lhe dando esp'rito e vida,

E de seu vivo fogo a tendo accesa:
Pera este fim n'ua casa alli escondida
Com promptidão estava e com viveza
O subtil mestre da obra, que servia
D'accender este fogo, e o repartia.

E como esta grã fabrica e estranha obra
Nos aposentos tres se dividia,

Como mais principaes, o mestres d'obra
Por todos providente discorria,
Fazendo sempre importantissima obra
Em todo o edificio e companhia;
E em que neste do meio mais morava,
Nos outros dous, mudando o nome, andava.

Mas com mover-se sempre, e com grã calma,
O mordomo, que disse, valeroso,
Sujeito estava aos accidentes da alma,'
Ora ledo, ora triste, ora medroso:

Outr'ora a ira, que tanto accende e encalma,
O dominava, outr'ora vergonhoso,
Com esperança, e sem 'sperança outr'ora,
Se alterava e mudava cada hora.

Que com conhecimento falso, ou certo,
As cousas, que de fóra procedião, 10
Ao mestre d'obra, sempre vivo e experto,
Deste seu aposento commovião:
Fazendo-o estar as tristes encoberto,
Por toda a torre as ledas o trazião
Com tanta variação, que de tal ver-se
Estava a risco ás vezes de perder-se.

Mas como tinha, a fim de recrear-se,
Este rico mordomo os dous abanos,
Tambem delles soía aproveitar-se

N'outros serviços seus por outros canos;
Porque no meio delles vi formar-se
Huma frauta coberta de dous pannos,
Que até o entrar na torre ía direita,
Fazendo varia musica e perfeita.

Huma porta subtil estava obrada,
E no fim della uma cabeça ou chave,12
Que dos pagens e d'outros bem tocada
Causava esta harmonia tão suave;
E no tom, que querião, temperada,
Soava ou alto ou baixo, ou agudo ou grave,
Com que gosto e proveito recebia

O veador e toda a companhia.

Tinha fortificado a este aposento
E reparado em rodå um forte muro,13
E da parte de fóra em bom assento

14

Duas fontes n'um quasi contra-muro,

Que, trazendo de dentro o nascimento,
O fazião ornado e mais seguro;
Mas estas duas fontes parecião
Estar seccas 15 então, e não corríão.

Despois d'eu visto ter parte por parte
Desta casa do meio a fórma bella,
A fabrica, o concerto, a ordem e arte,
A providencia e bom serviço della;
Como se alimentava cada parte
De toda a fortaleza, assim por ella

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