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«Na bibliotheca real de Bruxellas existia um documento de muito maior importancia. Passara largo tempo desapercebido, naturalmente por fazer parte de um tombo especial, e porventura tambem porque na lombada tinha esta menção: F. Xaverii, M. S. 1613.

«Este manuscrito, que o sr. Ruelens, conservador da bibliotheca real da Belgica, tornou conhecido, encontrava-se entre os immensos materiaes colligidos pelos Bollandistas, para a redacção das Acta Sanctorum, e parece ter sido incluido nesses documentos pelos historiadores sagrados, por conter um curioso retrato de S. Francisco Xavier com uma noticia relativa ao apostolado das Indias.

Em 1732 0 ms. foi dado á sociedade de Jesus pelo conego De Haze, conforme o indica a inscripção da capa: Societate Jesu Bruxellensi, J. H. de Haze, canonicus divæ Gudulio donat Francisci Xaverii Indiarum apostoli gratia, cujus sanctissimi viri imago cernitur fol. 47.° 1732.

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Em 1773, com a suppressão da ordem dos jesuitas na Belgica, o ms. passou ás mãos do estado, e figura hoje entre os documentos mais interessantes que possue a nossa bibliotheca real.

Já em 1881, sendo ministro de Portugal em Bruxellas o sr. Dantas, se pensara em reproduzir o ms., projecto que até agora ficou sem execução. Animado pelo sr. conde de Thomar, pensei então eu fazer a reproducção da obra de Godinho de Eredia.

Entendi dever acompanhar o ms. de Bruxellas com um fac-simile da carta que existe nos archivos de Lisboa, e uma cópia do mappa achado em Londres por Major.

«São estes os elementos para a reivindicação dos direitos de Portugal á descuberta da Australia, e para o estudo da figura interessante do descubridor Manuel Godinho de Eredia.

«Vê-se, com effeito, do ms. de Bruxellas, que, em 1601, Godinho de Eredia tivera conhecimento de uma terra que só em 1606 era encontrada pelo navio hollandez Het Duifken: entretanto os hollandezes reivindicam para o seu navio a gloria da descuberta da Australia.

«O documentos publicados não servem só para discutir esta questão interessante para a historia de Portugal e para a sciencia geogra phica mostram nos em Godinho de Eredia um homem erudito e um cosmographo notavel, e dão-nos, além d'isso, informações muito completas e interessantes sobre Malaca no principio do xvii seculo.»

Eis ahi as palavras do editor, a quem nós, sem duvida alguma, devemos ficar gratos pelo serviço que prestou á historia das nossas navegações. Nesta noticia summaria, como o leitor viu, ha apenas a observar um erro quando se falla dos vice-reis de Malaca, cargo que nunca existiu na organisação do dominio ultramarino portuguez. Vice-reis só os houve em Gôa, e nem todos os governadores da India o foram. Malaca existiu sempre como dependencia do go. verno geral da India, do qual só no tempo de D. Sebastião se destacou o de Moçambique, abrangendo os varios estabelecimentos da costa oriental de Africa, desde o cabo Djar-ha-fûn, ou Guardaful, até ao da Boa Esperança, infelizmente nunca occupado por nós.

I

Manuel Godinho da Eredia não era já um portuguez de sangue puro. Seu pae, João de Eredia, tivera o de Elena Vessiva, filha do rei de Supa (?) João Tubinanga. Era pois mestiço de portuguez e malaya.

Os cruzamentos de portuguezes com indigenas foram, como se sabe, communs em todo o Oriente. Foram-no até na Africa e no Brazil; porém, já o estado selvagem em que acharam as populações d'estas ultimas regiões, já a côr, fizeram com que os cruzamentos fossem menos importantes ahi do que no Oriente, onde achámos civilisações, mais ou menos adiantadas, mais ou menos caducas, singulares sim, mas civilisações. Os navegadores viram nos hindús, nos persas, nos afghans, nos arabes, gente de côr branca; e nos siamezes, pegus, malayos, chinezes e japonezes, amarellos ou meio-brancos. Foi necessario que chegassem ás Molucas e á Australia, para tornarem achar negros e selvagens como habitadores exclusivos, pois negros e selvagens havia e ha tambem no proprio Indostão.

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Eredia, portanto, era um mestiço malayoportuguez. Já no seu tempo havia passado um seculo sobre a conquista da terra por Affonso de Albuquerque; já sem duvida se formara um nucleo de população cruzada, fallando portuguez. Esses typos de gente mes

tiça foram destinados a sorte bem diversa, conforme foi o destino que a historia preparou para as antigas cidades portuguezas. Por toda a parte se deu como regra a regressão ao typo indigena, mas variou com os logares a condição da gente. Ao passo que o macaista apre senta com a falla portugueza um typo inteiramente chinez, o portuguez de Malaca (e o de Ceylão) pois ainda hoje tal portuguez existe, regressou a um estado miseravel. Vêem-se homens inferiores aos malayos, diz o dr. Yvan que os estudou fallando, um dialecto portuguez e chamando-se Castros, Menezes, Albuquer ques (1).

Em Godinho de Eredia encontramos, pois, não um portuguez de Portugal como os que iam

(1) Malaca, diz o dr. Ivan, conta proximamente 30:000 habitantes, população composta de portuguezes, hollandezes, inglezes e chinezes. Entre os habitantes de origem europea, os portuguezes são os mais numerosos. São na maxima parte descendentes dos antigos conquistadores da Malasia. Seus avós foram os companheiros de Vasco da Gama e de Affoso de Albuquerque, mas, á maneira dos monumentos construidos por elles, e que coalham o solo com as suas ruinas, tambem os netos soffreram a degradação da edade. No meio da população malaya, á qual por seculos teem estado alliados, os 20:000 descendentes dos antigos portuguezes são phisicamente horrendos e moralmente abjectos. Nem no porte, nem no aspecto, mostram a energia brava dos antepassados. Dir-se-hia antes que descendem de ethiopes. As suas feições teem o que quer que é de bestial: n'uma palavra, teem na face deprimida e azeitonada o signal de uma degeneração moral. Não fazem a mais pequena ideia dos seus gloriosos antepassados. A tradição, essa saudade consoladora das raças decaídas, apagou-se-lhes da memoria. A maior parte teem nomes illustres, mas ignoram quem tivesem sido seus avós e que scentelhas do passado illluminam a escuridão do presente.-Morel, Traité des Degénérescences,pag413.

e vinham da Europa ao Oriente, mas o representante de uma população mestiça colonial.

Um romance, talvez um rapto, uniu o pae do nosso navegador á princeza de Supa. Embarcou ella clandestinamente, e só depois em Malaca se pôde santificar a união, conforme as prescripções do concilio tridentino. Elle, o marido, era de linhagem fidalga e origem aragoneza. Seus avós tinham vindo para Portugal no tempo de Affonso V, por seguirem a causa mallograda na triste batalha de Toro. No tempo de D. Manuel, Diogo de Eredia é cavalleiro de Christo e fidalgo do casa real.

O pae do nosso auctor foi naturalmente para a India como soldado de fortuna. Manuel nasceu provavelmente em Malaca. Em 1594 Philippe I encarrega-o de descobrimentos na India meridional. Em 1600 acha-se em Gôa, pedindo ao vice-rei D. Francisco da Gama que o envie á empreza da descoberta da «Ilha de Oiro a terra que depois veio a chamar-se Australia.

Depois d'esta passagem na India, ainda ali voltou acaso mais de uma vez, porém é de crêr que a sua residencia ordinaria fosse Malaca, a sua patria. Os planos de fortalezas, as explorações dos sertões, as descripções de mares e territorios, quasi tudo o que se encontra nos seus escritos, agora publicados, se refere a essa remota possessão da Corôa portugueza nos tempos historicos.

Eis-ahi o que se póde dizer ácerca do autor da Declaraçam. Nós vemos nelle um personagem correspondente, sob certos pontos de vista, aos exploradores dos sertões de S. Paulo, ou aos senhores das roças da Bahia

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