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de todos, esse anhelo do coração que anceia por se lançar nos braços de um pae, uma mãe, da amante, da esposa ou do amigo, esquecendo em um momento os perigos e incommodos de uma trabalhosa navegação, podeis bem avaliar a justa dor que devia atormentar aquelle cujo destino era velar o cadaver do amigo, quando todos abriam o coração á alegria. Tão doces impressões do momento não estavam reservadas para o nosso Poeta! Depois de dezeseis annos de ausencia, quantas vidas caras tinham desapparecido, e o íam tornando isolado no mundo! Seu pae pela sua provecta idade provavelmente não existia; a amante era igualmente fallecida, e apenas lhe restava para beijar a loisa fria que cobria essa bôca de rosa e cecem, tantas vezes debuxada em suas poesias; o seu amigo mais caro acabava a morte de lh'o roubar; esposa, outra não tinha que não fosse a patria, e essa arquejava nas ancias da morte. Restava-lhe comtudo uma velha decrepita para o receber em seus braços mirrados, e esta velha era sua mãe; mas com que desgostos era aguado este unico prazer! E quem diria que ella havia ainda sobreviver-lhe 1, e que se sentaria junto ao leito do Poeta moribundo, para que houvesse ao menos uma alma piedosa que lhe recebesse o ultimo alento e lhe cerrasse os olhos!

Não era mais risonho o aspecto dos negocios publicos. A nau do estado, compellida por varios e desabridos ventos, nutava entre cachopos escabrosos. A côrte de D. João III, essa côrte de muita gloria e algumas miserias, já não existia; as redeas do Estado tinham passado das mãos femininas da Rainha viuva, para as de um Principe idoso, mais proprio para empunhar o baculo do que o sceptro, e d'estas para as de um joven a quem um excesso de valor induzia á sua ruina. Acrescia a isto que um d'estes horriveis flagellos, com que Deus visita os povos na sua ira, uma mortifera e espantosa peste assolava o reino com tanta intensidade, que um historiador contemporaneo computa em sessenta mil as victimas de um tão horroroso castigo2.

Com tão aziagas circumstancias dava fundo na bahia de Cascaes a nau Santa Clara, em Abril do anno de 1570, nau a mais rica que tinha vindo da carreira da India, pois trazia a seu bordo Luiz de Camões e Diogo do Couto. E na verdade, se o poeta de Venuza fazia votos para que o navio que levava Virgilio a Athenas, fosse a salvamento, não deviam os portuguezes faze-los menos ardentes, para que a nau Santa Clara

1 Vide nota 53.a

2 Vide nota 54.a

chegasse com prospera viagem á patria, a qual trazia o nosso Poeta, e vinha pejada com o maior brasão da gloria de Portugal. Tinha El-Rei ordenado, por a cidade estar ainda de peste, que surgissem fóra as naus, e logoque chegassem lhe mandassem um creado seu a Almeirim, onde então estava, para saber novas da India; foi Diogo do Couto, e por ordem que trouxe d'El-Rei, por os medicos assentarem que a cidade estava livre do mal, entraram as naus a barra, e a cidade abriu de todo as portas no mez de Junho. Tão ancioso desembarcou o Poeta, tão sofrego de pizar as praias do seu Tejo, outr'ora tão festivo, e agora mudo e triste pelos effeitos do contagio, que esquecido o antigo resentimento, em uma carta dirigida a um amigo do Porto, com o maior alvoroço lhe dizia que não acabava de crer que havia conseguido o achar-se na sua patria, carta preciosissima, que segundo nos diz Faria e Sousa conservava o amigo a quem lavia sido escripta, com respeitoso culto ricamente moldurada.

XVI

Por mais que um homem se veja offendido da terra onde nasceu, as expressões de despeito que solta são, permitta-se-me a comparação, arrufos de amante que patenteiam mais acalorado e intrinseco amor; a indifferença não rompe em expressões de resentimento. E quem póde deixar de amar a terra onde descansam as cinzas de nossos maiores, que ouviu os nossos primeiros vagidos, onde pullulou a mocidade, onde tiveram logar as nossas mais caras affeições, e onde a amizade ou o amor virá mais tarde orvalhar com uma lagrima de saudade a terra que cobrir os nossos restos mortaes? Transplantae uma arvore dos tropicos, e apesar de dobrado, esmero e cultura, ella vive no nosso clima, porém vegeta uma vida rachitica; do mesmo modo em terra estranha, ainda que nos embriaguem prazeres artificiaes, attenções delicadas e de mimosa cortezia dos hospedes, na ultima hora, no leito da morte, os nossos olhos se volvem involuntariamente á patria, como a bussola procura o norte, o ultimo sentimento é pela terra que nos viu nascer: dulce moriens reminiscitur Argos.

Mas como devia ser doce ao nosso Poeta o bafo da patria, depois das asperas rajadas e tormentas da vida, após o exilio, o carcere, o naufragio, o sangue desparzido nas batalhas, a fome, a mendicidade, essas ingratidões de amigos, e tantos acontecimentos infelizes da vida, que faziam romper o nosso Poeta n'estes versos tão patheticos:

No mar, tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!

Onde póde acolher-se hum fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?

Que não se arme, e indigne o Ceo sereno

Contra hum bicho da terra tão pequeno.,

E se esta terra cobrir metade da nossa existencia, aquella que no mundo sobre todas as cousas mais amámos, quem póde resistir á saudosa attracção que nos chama á beira da sepultura que contém despojos tão preciosos? Se a cinco mil leguas o Poeta, em um enfadonho cruzeiro nas costas da Arabia, conversava os ventos que vinham do lado da patria, e lhes pedia novas da amante, agora vinha elle proprio carpir sobre a sua sepultura e immortalisar o seu nome. Se o vimos, logo ao chegar, ao pizar as praias da patria, acompanhando o cadaver do amigo, sigâmo-lo tambem, com os olhos da imaginação, ao templo que encerra os despojos mortaes da sua Natercia, da sua querida D. Catharina de Athaide. Vede-o ajoelhado sobre a campa, extatico, immovel, com os olhos arrazados de lagrimas! Que sensações agitam aquelle coração! Aquelle corpo tão airoso, que se movia com um caminhar de deusa, ahi jaz sem movimento sobre a terra fria! emmudeceu a voz que vibrava no coração; os olhos onde se revia, que o inflammavam e o reprimiam, já não têem luz em si; o peito que arfava de amor parou, nem ha já um sorriso para o Poeta; e aquellas orelhas angelicas não podem ouvir os seus prantos, que tudo é extincto, e cobre uma pedra dura e importuna tanta formosura! Tal é a omnipotencia da morte!

Mas eis-lo acordado do seu lethargo, e que balbucia, murmura umas palavras; ouçâmo-lo:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,"
Repousa lá no Ceo eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento Ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Não te esqueças daquelle amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires, que póde merecer-te
Algua cousa a dor que me ficou
Da magoa, sem remedio, de perder-te;
Roga a Deus que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

Tal se me representa o Poeta n'estas sentidissimas vozes, bem como n'outras patheticas composições, e especialmente na egloga xv1, a exemplo do Dante e Petrarcha, carpir a morte da sua amante. E se os nomes de Beatriz e Laura, que não passariam de umas senhoras italianas, ignoradas sem o amor d'aquelles dois poetas, foram levados á posteridade pelos seus cantos immortaes, ao nosso Poeta que punha a sua D. Catharina acima das duas damas,

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dominava o pensamento mais sublime de a immortalisar, immortalisando ao mesmo tempo a sua patria, essa terra que ella, anjo caído do céu, pizára de passagem com as delicadas plantas, e que fazia florir de verdura no ephemero trajecto com que a havia percorrido.

Pois se o desejo afina

Huma alma accesa tanto,

Que por vós use as partes de divina,

Por vós levantarei não visto canto,

Que o Betys me ouça, o Tibre me levante,.

Que o nosso claro Tejo

Envolto hum pouco o vejo e dissonante.

Era pois este, repito, o sentimento duplicado, nobre e magnanimo que devorava aquella alma longe da patria, o immortalisar aquella que adorava e a terra que lhe deu o ser, que mais que tudo com desinteressado amor elle amava. Que ancias, que torturas deviam macerar · aquelle coração em um terreno inhospito, inclemente e doentio, tendo

Vide nota 55.a

que atravessar, apoz tão multiplicadas vicessitudeš da vida, tantas leguas do mar com esses Cantos já molhados de um naufragio; quaes estas fossem ouvi-o da boca do mesmo Poeta:

Esta he a ditosa patria minha amada,

Á qual se o Ceo me dá, que eu sem perigo

Torne, com esta empreza já acabada,
Acabe-se esta luz aqui comigo.

São interessantes as estancias nas quaes, especialmente nos cantos VII ex, nos descreve os trabalhos padecidos durante a composição do seu poema, e os perigos por que passou este thesouro nacional.

Hum ramo na mão tinha... Mas ó cego,
Eu que commetto insano, e temerario,
Sem vós, Nymphas do Tejo, e do Mondego,
Por caminho tão arduo, longo, e vario!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrario,
Que se não me ajudais, hei grande medo,
Que o meu fraco batel se allague cedo.

Olhai que ha tanto tempo, que cantando
O vosso Tejo, e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos mavorcios inhumanos;
Qual Canace, que à morte se condena,
N'uma mão sempre a espada, e n'outra a pena.

Agora com pobreza aborrecida,
Por hospicios alheios degradado;
Agora da esperança já adquirida,
De novo mais que nunca derribado:
Agora ás costas escapando a vida,
Que de hum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se,
Que para o Rey Judaico acrescentar-se.

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