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seus versos, ao que o Poeta satisfez, remettendo-os com a ode (inedita) que começa:

Fora conveniente

Ser eu outro Petrarcha ou Garcilasso, etc.

na qual se notam os seguintes versos, em os quaes mostra o alto apreço que fazia da pessoa do Vice-Rei, a quem reputa juiz mui competente, como Poeta distincto.

Não he de confiado

Mostrar-vos minhas cousas, pois conheço

Que tendes alcançado

Nisto o mais alto preço,

E quanto em mostra-las desmereço.

Mas he de desejoso

De vos obedecer, por que estou vendo

Que a nome tão honroso,

Mais ganho obedecendo,

Que perco em demonstrar quão pouco intendo.

Mas não se limitaram a cumprimentos banaes as boas graças do protector e antigo camarada; fez justiça aos seus longos serviços, agraciando-o com a sobrevivencia da Feitoria de Chaul 1, logar onde podia recuperar a fortuna perdida, e que reunia representação, pois alem do ordenado de 1005000 réis annuaes e mais propinas, lhe andavam annexos os cargos de Alcaide mór, Provedor dos defuntos e Védor das obras.

Começava a faltar ao Poeta a resignação e o alento para supportar o seu longo exilio, e a imagem cara da patria continuamente se lhe apresentava aos olhos da imaginação; encurtava-se-lhe a vida, e com a mingua d'esta o desejo mais vivo de a tornar a ver.

Cumpre acabe a vida n'estes ermos,

exclama o Poeta com a maior violencia da dor em um dos seus sonetos (ineditos), e em outro igualmente (inedito):

Bem sei que heide morrer nesta saúdade,

Em que meu esperar he todo vento,

Pois nada espero ao que desejo.

1 Vide nota 49.a

Abandonado da esperança, via o Poeta a inutilidade da persistencia em um sitio onde sómente o soffrimento lhe consumia a vida sem proveito ou interesse proprio, e que apenas aguardava consumir-lhe os ossos. Este triste desengano expressa o Poeta no soneto LXXXIX:

Mudando andei, costume, terra, estado,

Por ver se se mudava a sorte dura,

A vida pus nas mãos de hum leve lenho,

Mas segundo o que o ceo me tem mostrado,

Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já, que não a tenho.

Mas é principalmente na bellissima canção x, que o Poeta nos apresenta o sudario de todas as infelicidades que experimentava longe da patria nos ultimos tempos da sua residencia na India:

Agora peregrino, vago, e errante,
Vendo nações, lingoagens e costumes,
Ceos varios, qualidades differentes,
Só por seguir com passos deligentes
A ti, Fortuna injusta, que consumes
As idades, levando-lhes diante
Huma esperança em vista de diamante:
Mas quando das mãos cae, se conhece
Que he fragil vidro aquillo que aparece.

A piedade humana me faltava,
A gente amiga ja contraria via
No perigo primeiro; e no segundo
Terra em que pôr os pes me falecia,
Ar para respirar se me negava,

E faltava-me em fim o tempo e o mundo;
Que segredo tão arduo e tão profundo,
Nascer para viver, e para a vida

Faltar-me quanto o mundo tem para ella!
Em fim não houve trance de fortuna,
Nem perigos, nem casos duvidosos,
(Injustiças daquelles que o confuso

Regimento do mundo, antigo abuso,
Faz sobre os outros homens poderosos)
Que eu não passasse atado á fiel coluna
Do sofrimento meu, que a importuna
Perseguição de males em pedaços
Mil vezes fez à força de seus braços.

Não conto tantos males como aquelle,
Que depois da tormenta procelosa,
Os casos della conta em porto ledo,
Que inda agora a fortuna fluctuosa
A tamanhas miserias me compelle,
Que de dar hum só passo tenho medo.
Ja de mal que me venha não me arredo,
Nem bem que me falleça, ja pertendo,
Que para mim não vale astucia humana;
Da força soberana

Da Providencia, em fim, divina pendo.

Tal era o desalento do Poeta no meio de tantas desventuras. No soneto XLIX nos descreve com as mais tristes cores toda a dureza d'esta tão cançada peregrinação, que cada vez se lhe tornava mais insupportavel e aborrecida.

Ó como se me alonga, de anno em anno,

A perigrinação cançada minha,

Como se encurta, e como ao fim caminha

Este meu breve, e vão discurso humano!

Mingoando a idade, vai crecendo o dano, etc.

Uma tão longa, pois, e trabalhosa peregrinação, o trazia de todo descoroçoado. A idéa que havia de acabar n'este desterro, ou n'esta saudade, como elle lhe chama, o attribulava, fazendo-lhe crescer de dia para dia o desejo de regressar á patria, desejo pelo qual almejava o seu coração patriotico, julgando que n'ella vinha achar o repouso e o premio devido, depois de dezeseis annos de serviços, fadigas e desgostos. Offereceu-se-lhe uma occasião de se vir approximando a ella, e promptamente a abraçou, abandonando o esperar pela vagatura do logar para que tinha sido despachado. Por morte de Fernão Martins Freire (1567),

succedeu na capitania de Moçambique Pedro Barreto 1, e offerecendo-lhe passagem, com elle se embarcou com o pensamento de esperar nau que o trouxesse ao reino, ou ainda enganado com a esperança e promessas do proprio Pedro Barreto, de o melhorar de fortuna.

N'este inverno, que se demorou em Moçambique, se empregou em rever e aperfeiçoar os seus Lusiadas, unico thesouro que trazia da India para apresentar a El-Rei D. Sebastião.

XV

Em Setembro de 1569 partiu de Goa a armada para o reino, e n'ella vinha o Vice-Rei D. Antão de Noronha, que antes de chegar a Moçambique falleceu. Vinham com elle varios fidalgos, e n'este numero Heitor da Silveira o Drago, e o celebre historiador da India Diogo do Couto, ambos intimos amigos do Poeta, a quem foram achar, indo de arribada a Moçambique, tão pobre que comia de amigos, e para vir para o reino The juntaram estes o que houve mister, não faltando quem lhe desse de comer; e porque Pedro Barreto o embargava, segundo dizem, por duzentos cruzados, que com elle havia gastado com a passagem de Goa, se fintaram os fidalgos que ali vinham e pagaram aquella quantia, de maneira, exclama Faria e Sousa, que a pessoa de Luiz de Camões e a gloria de Pedro Barreto foram vendidas por duzentos cruzados! E por que não é justo, se o facto é verdadeiro, que fiquem estes illustres cavalleiros esquecidos, que provavelmente concorreram todos para uma tão louvavel acção, porei aqui os seus nomes: Heitor da Silveira, que devia ser o principal instigador, D. João Pereira, cunhado do Vice-Rei, D. Pedro da Guerra, Ayres de Sousa de Santarem, Manuel de Mello, filho de Ruy de Mello, o da Mina, Gaspar de Brito, Fernão Gomes da Gran, que depois foi Guarda mór do reino, Lourenço Vaz Pegado, Antonio Cabral, Luiz da Veiga, Duarte de Abreu, Antonio Ferrão e Diogo do Couto.

Antes de sair a armada de Moçambique, chegou Vasco Fernandes Homem, em uma nau que tinha saído do reino em companhia de Francisco Barreto, que El-Rei mandava por conquistador das minas de Monomotapa, do que affrontado seu parente Pedro Barreto, largou o governd, tendo ainda um anno que servir aquella Capitania, e embarcando na armada que partiu para o reino, falleceu na viagem.

1 Vide nota 50.

A fortuna que foi sempre tão contraria ao nosso Poeta, parecia ao menós favorece-lo n'esta occasião, trazendo ali opportunamente aquelles fidalgos, sem a protecção dos quaes talvez não podesse regressar ao reino; e a idéa de ficar novamente debaixo do governo e auctoridade de um homem que elle tinha offendido, e de quem reputava ter recebido tambem offensa, devia ser para elle bem afflictiva e capaz de quebrantar de todo um animo já prostrado com todo o peso da desventura e pobreza, postoque se pode conjecturar dos elevados sentimentos do Poeta, e do cavalheirismo d'aquelle fidalgo, que o resentimento desappareceria, e se renovariam as antigas relações de amizade. Em Novembro se fez a armada de véla para o reino, e n'ella se embarcou o Poeta, aproveitando todo o tempo da viagem em escrever em um livro que intitulava Parnaso de Luiz de Camões 1, que lhe furtaram em Moçambique. Diogo de Couto fez depois reiteradas, mas infructiferas diligencias para descobrir este livro, que, segundo elle mesmo diz, encerrava muita erudição, doutrina e philosophia. Este roubo o quizeram attribuir a Fernão Alvares do Oriente, mas com a maior injustiça; o roubo foi feito em Portugal, e Fernão Alvares do Oriente no anno de. 1576 ainda militava na India, d'onde veiu já no fim da vida do Poeta. O que deu motivo a este falso testemunho foi o exaltado enthusiasmo d'este amigo do Poeta, que o levou, não só a imitar-lhe o estylo, mas ainda a matizar e enxerir com versos seus as suas poesias.

A protecção dos amigos que em Moçambique deram as mãos ao nosso Poeta parecia apontar-lhe uma aurora de dias mais ledos e serenos; porém a má sorte que sempre o perseguia cerrou de novo com tenebrosas e carregadas nuvens esse arrebol de prosperidade que divisava ao longe, convertendo-se em dias de amargura esses poucos que lhe restavam de uma vida cansada e trabalhosa.

Por um d'estes jogos da fortuna, a que uns chamarão mau fado, e a que eu não sei dar o nome, o Poeta, ao saír a barra de Lisboa, perdia um amigo que ao menos ás mãos dos mouros morria uma morte gloriosa; agora á vista dos pincaros e penedos da serra de Cintra, ao entrar esse Tejo seu, tão cantado, perdia outro amigo como elle pobre, poeta e guerreiro, o seu Heitor da Silveira 2, e com tão ruim agouro se avisinhava da patria. Vós só que tendes atravessado as aguas do mar, que haveis experimentado esse prazer indefinivel que pullula no semblante

1 Vide nota 51.a

2 Vide nota 52.

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