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si o vacuo irreparavel da saudade; cáe como pomo maduro o velho de quem fomos companheiro na infancia; desapparece a geração que nos viu nascer; a que vem não a comprehendemos, e incommoda-se com o nosso commercio: sós, isolados, vegetâmos uma vida incommoda, e como tronco carcomido, que escapou por inutil ao machado na vasta destruição da floresta, aguardamos o mais pequeno sopro que desarreigue as ultimas raizes que ainda nos prendem á terra. Entrava o Poeta apenas no outono da vida, e já se via cercado de todos os incommodos de uma velhice prematura, aggravados ainda pela magua que lhe causava o desastroso fim dos seus mais intimos amigos.

Havia apenas dois annos (1559), que o seu tão querido amigo D. Alvaro da Silveira terminava a vida com uma morte tão cruel, degolado pelos turcos, quando seu irmão, o jesuita Gonçalo da Silveira, não menos estimado do Poeta, acabava a vida recebendo a corôa do martyrio nas terras do Monomotapa (1561), n'esses mesmos sitios que poucos annos depois tinham de receber o ultimo suspiro d'esse tão falsamente preconisado inimigo do Poeta, o valoroso D. Francisco Barreto. Era D. Gonçalo da Silveira o decimo filho do Conde da Sortelha, Doutor em theologia e o sexto Provincial da India, um dos apostolos d'aquelle estado o mais ardente nas missões; orçava pela idade do Poeta, e foi para a India no anno de 1556, d'onde mais tarde passára a missionar em Africa (1560), onde, depois de haver feito grandes conversões, foi martyrisado pelos cafres, os quaes, receiosos que o seu corpo contaminasse as terras, por o julgarem feiticeiro, o lançaram ao lago d'onde nasce o rio Mossenguese. D'ahi, indo pelo rio abaixo, acrescenta a lenda, que é assás poetica, o levaram uns leões e tigres, que o guardam em um sitio despovoado, para onde ninguem se approxima com medo d'estas feras, e onde formosas aves entoam de continuo melodiosos cantos, vendo-se ali bruxelear luzes.

Tal era a intima amisade que existia entre o Poeta e o missionario, que sendo elle no seu poema tão parco em fazer o elogio dos contemporaneos, e que passa mesmo pelas missões do Japão sem fazer expressa menção de S. Francisco Xavier, reserva dois versos para consignar o martyrio do amigo:

Onde Gonçalo morte e vituperio.
Receberá pela fé santa sua.

Ainda as lagrimas do Poeta não estavam bem enxutas pela perda do

amigo, e já as ondas do mar tragavam e recebiam no seu seio outro, não menos prezado, seu companheiro e camarada e como elle poeta, um dos convidados da ceia, João Lopes Leitão, que, como se deprehende de alguns versos de auctores contemporaneos, morreu afogado longe da patria. Por este tempo, em Fevereiro de 1564, teve logar tambem a morte do Vice-Rei, que o Poeta muito amava, e a quem deveu obrigações e uma posição melhorada.

XIII

Fallecido o Vice-Rei se abriu a primeira successão e se achou por successor D. Antão de Noronha, que no anno de 1562 tinha vindo para o reino; e como estava ausente se abriu a segunda, e se achou João de Mendonça, que estava presente, e tinha acabado de servir o cargo de Capitão de Malaca, o qual tomou posse do governo na ausencia de D. Antão de Noronha, que a 3 de Setembro do mesmo anno chegou á India. A morte do Vice-Rei, juntamente com os outros desgostos, devia causar ao Poeta uma impressão bem dolorosa, e aggravar a sua má situação, privando-o dos recursos e protecção que podia esperar do valimento d'aquelle fidalgo.

Poucas mais noticias se podem adiantar sobre o resto do tempo que se demorou na India: consta comtudo das suas poesias que cultivou uns novos amores, e foi objecto d'elles uma dama que celebrou debaixo do anagramma de Dinamene, e que morreu afogada indo de viagem; mas isto não nos deve admirar, pois sabemos que o Poeta, apesar de o abrasar o mais intenso fogo pela sua Natercia, se chamuscou em varias chammas. Comtudo esta nova impressão parece ter sido passageira, e como um Oasis que se apresentava na aridez do infortunio, pois nas suas composições, onde desafoga com tanta côr de verdade (principalmente nas canções), e expõe com tanta poesia e verdadeiro sentimento a desesperada situação da sua existencia, sempre se encontra associada a saudade dos antigos amores.

Ignorâmos tambem quaes foram as outras expedições militares em que serviu; mas pelas suas poesias sabemos que discorreu a India por todas as partes regando-a com o seu sangue;

Porque ficasse a vida

Por o mundo em pedaços repartida.

Uma tradição constante, ajudada de bom fundamento, dá o Poeta residindo algum tempo em Malaça e nas Molucas. Basta lançar os olhos pelo Canto x dos Lusiadas para se conhecer pelo vigor do pincel e exactidão das tintas, que quem debuxou o quadro d'estas paragens, as pizou com os seus pés. Uma incisão, que parece observar-se n'este Canto desde a estancia cxxxII, denota que elle não foi feito de um só jacto, porém elaborado desde esta estancia depois que o Poeta visitou de novo estes sitios, ou por conveniencia de interesses, ou no exercicio das armas nas expedições militares. A verdade da descripção ocular é tão clara que até nos pinta a differença dos dois vulcões, do de Ternate que lança do fervente cume chammas ondeadas, e do de Sumatra que vapora tremulas chammas. Tendo começado a sua descripção pela costa da Africa, costeando a da India, fazendo algumas excursões ideaes ao interior, e penetrando no mar Roxo e golpho Persico, segue sempre costeando até o Japão; terminando a primeira derrota, começa de novo por Ternate, Borneo e as outras Molucas, repete a descripção de Sumatra, descreve Ceylão, as Maldivas, e termina a descripção pela ilha de Madagascar defronte de Moçambique, ultima terra da Africa que o Poeta tocou em sua volta para o reino.

Que elle esteve n'estes sitios não nos parece duvidoso, antes o temos por certo; porém no que não podemos concordar é na epocha que assignalam os differentes biographos, porque vae de encontro a toda a chronologia rasoavel da vida do Poeta. Até o seu despacho, ou, como querem alguns, degredo para a China, as expediçõès militares do Poeta foram para mui opposto sitio; durante a sua estada em Macau não soffre tão pouco tempo de residencia uma tão larga navegação; alem d'isto, como temos observado, assim como a primeira parte d'esta descripção é feita debaixo das impressões das primeiras viagens, a segunda o é com a memoria ainda fresca da ultima visita que fez aquellas remotas partes da Asia. Depois da sua volta da China para Goa, temos a certeza, derivada das suas poesias, que o Poeta todos os annos residiu em Goa, durante o tempo que não militava nas armadas até o anno de 1564, como é evidente da chronologia de álgumas das suas poesias, que aqui apresentamos para mais perfeita demonstração do que se as

severa.

Por fins do anno de 1558 estava o Poeta em Goa, onde o veiu encontrar preso por ordem do Governador Francisco Barreto o Vice-Rei D. Constantino de Bragança. O começo do anno seguinte de 1559 provavelmente o passou ainda na prisão; no fim d'este anno, ou antes no

de 1560, escreveu a elegia á morte do seu amigo D. Alvaro da Silveira, acontecida no malogrado conflicto do Baharem. As oitavas a D. Constantino de Bragança foram feitas depois do anno de 1560, porque já se refere ao successo de Jafanapatão, que teve logar n'aquelle mesmo anno: deviam ser feitas entre Março, em que saíu a expedição, e Setembro de 1564, em que o Vice-Rei acabou o governo. Em Dezembro de 1562 partiu o Conde de Redondo D. Francisco para assentar pazes com o Çamorim; estava então o Poeta preso, como consta do memorial, no qual pede ao Vice-Rei o mande soltar antes de partir. Em Janeiro de 1563 estava o Vice-Rei de volta do Çamorim em Cochim, e foi n'esta cidade e por esta occasião que teve logar a morte de D. Tello de Menezes, amigo do Poeta, em um duello, que deu assumpto á elegia xx. Por entrada de Setembro d'este mesmo anno é que o Vice-Rei determinava partir para o Achem, o que não poz em pratica, diz Diogo do Couto, que não sabe o motivo, talvez por lhe vir novo Regimento por fim de Janeiro de 1564. Depois de mandar as naus para o reino, é que o Vice-Rei mandou Domingos de Mesquita esperar e abrazar uns oitenta pagueis que vinham de Cambaia; isto foi poucos dias antes da morte do Vice-Rei, que teve logar a 19 de Fevereiro d'este anno. Por este tempo estava em Goa, como consta da ode VIII, impressa pela primeira vez no Livro dos Colloquios dos simples e drogas da India do medico Garcia de Horta, impresso em Goa no anno de 1563. É n'esta mesma ode que o Poeta se refere a estas emprezas militares em que se achava empenhado o ViceRei:

Posto que o pensamento

Occupado tenhais na guerra infesta,
Ou com o sanguinolento

Taprobano, ou Achem que o mar molesta,
Ou co' o Cambayco, occulto imigo nosso,

Que qualquer delles teme o nome vosso.

Nos ultimos annos porém da estada do Poeta na India se nota o mais profundo silencio, não só da parte dos biographos que dão um salto até á chegada a Moçambique, mas nem uma das suas poesias dá o mais ligeiro indicio ou prova da sua assistencia em Goa, durante o governo de um Vice-Rei que lhe era affeiçoado, como foi D. Antão de Noronha, com quem o Poeta tinha militado em Ceuta.

Antes de chegar do reino o Vice-Rei, tinha o Governador João de Mendonça tratado de despachar os Capitães que haviam de ir para fóra,

e quando era entrada de Agosto tinha uma nau prestes para fazer a viagem do Japão, em que havia de ir Simão de Mendonça, e pretendia tambem embarcar-se D. Leoniz Pereira para ir entrar na capitania de Malaca, para que estava provido. Se D. Leoniz foi esforçado alumno de Marte, não o foi menos fervoroso de Apollo, do que nos dá testemunho o proprio Poeta na sua elegia iv. Por esta composição, que serviu para recommendar o auctor da Historia do Brazil, Pedro de Magalhães Gandavo, ao heroe de Malaca, e pelo soneto CCXXVIII se conhece quanto este era affeiçoado ao nosso Poeta, e assim supponho que elle, encostado á protecção d'este fidalgo, se dispoz, com a idéa talvez de recuperar a fortuna perdida, a acompanha-lo ao seu governo, centro de um rico e florescente commercio. Antes de partir a nau que se achava prompta para seguir viagem, chegou em Setembro (1564) o Vice-Rei D. Antão de Noronha e com elle D. Diogo de Menezes, o proto-martyr da liberdade portugueza, aquelle mesmo que annos depois, sendo governador de Cascaes, Filippe II mandou degolar por lhe resistir, seguindo o partido do Prior do Crato. Estava este fidalgo provido em primeiro logar com esta capitania; e assim o Vice-Rei D. Antão de Noronha apenas chegou o despachou logo para ir na nau que estava apparelhada, e com elle foi o nosso Poeta obrigado pela disciplina militar, ou por conveniencias, e de lá se passou ás Molucas e talvez ao Japão, onde devia discorrer desde o anno de 1564, em que partiu, até o de 1566 ou 1567 em que regressou a Goa. D'estes sitios devia trazer o seu Jau, que tão poeticamente figura como companheiro fiel na adversidade, desfazendo-se por este modo o fraco reparo de Garcez, que objecta dever perder-se o escravo se o naufragio da China fosse na volta, como se o escravo, segundo adverte o sr. Bispo de Viseu, não podéra tambem salvar-se, ou o Poeta mesmo toma-lo em Goa.

XIV

Largou o Poeta estas paragens, theatro da ferocidade de alguns dos nossos Capitães, e que no tempo da sua residencia começavam a encruecer com sanguinolenta guerra, e se dirigiu pelo começo ou meado do anno de 1567 a Goa. Ao chegar a esta cidade o Vice-Rei, que lhe era inclinado1, e desde Africa testemunha ocular da sua carreira militar, The fez um bom acolhimento; e apreciador da boa poesia pediu-lhe os

1 Vide nota 48."

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