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sem se debotar te cinge a frente na Europa, na Asia, na Africa e na America, e t'a cingiria n'outros mundos se mais houvera onde levasses, como levaste ao conhecido, a fama do teu nome e a victoriosa marcha das tuas armas. Não adiantou tanto suas conquistas a Macedonia, não sahirão do Mediterraneo as navegações de Athenas, nem poderão voar alem dos Tropicos as tuas orgulhosas, e devastadoras aguias, ó soberba Roma. Teu Scipião conquistou Carthago, teu Mario os Cimbros, teu Cezar as Gallias, teu Pompeo o Egypto, teu Crasso não passou da Persia, e teu Germanico não chegou ás ribeiras do Elba: e tu, grande Nação, chegaste aos lemites e confins da Terra. Onde se aperta o Erithreo, onde se empola, e se arrebata o Indo, onde se esconde o Nilo, onde se espraia o Ganges, onde se precipita o Mecon, onde espuma, e soa o Camboja, onde se dilata o Amazonas, onde se accende o Equador, onde se congela o Antartico, onde se tempéra, e amacia o Cancro, onde se ferteliza o Indostão, onde se embalsama Ceilão, onde ardem os Volcoens de Ternate, onde arranca os diamantes Visapur; onde os Andes sobem ás nuvens, onde referve o Congo, onde em ouro se coalhão os campos de Sofala; ahi vive o teu nome, e se temem (se ainda se lhes escuta o estrepito) as tuas armas. Tanta grandeza, tão vasta dominação, tão espantoso circulo de Imperio tu o deves ao esforço e militares virtudes daquelles verdadeiros Heroes, que entre os mais afamados invejára, e cubicára Roma para seus filhos, e que em quanto no Mundo se der preço á virtude, serão nelle estimados, e nomeados, conservando na memoria, e na tradição dos seculos o pedestal firmissimo da estatua da tua fama. >>

Sim, com rasão o diz o eloquente orador, foi ao valor e virtudes patrioticas dos seus monarchas; á nobre ambição em estender os limites do acanhado terreno que herdaram; á illustrada educação, amor da patria, e espirito de cavallaria de seus principes; aos nobres estimulos de uma aristocracia illustre pelo valor e sciencia; á intrepidez, dedicação e perseverança na empreza do mais nobre povo do universo: foi a todos os filhos de Portugal, nobres e peões, que á porfia misturavam o seu sangue com nobre emulação para o engrandecimento da patria, que esta nação deveu o primar entre todas as da terra, sendo outr'ora o pasmo e admiração dos estrangeiros. E quem recusaria admirar um povo tão pequeno, collocado em um canto da Europa, libertado pelas suas mãos dos sarracenos, e ultimamente obrigado a defender a sua independencia de uma nação visinha e poderosa, atrever-se a emprehender e executar tão grandes e maravilhosas cousas? Quem deixaria

de admirar esse sabio Infante D. Henrique interrogando os astros, e ameaçando o mar de o avassallar todo para a corôa portugueza, e a louvavel tenacidade com que o pensamento civilisador do Principe é abraçado e seguido por um tão longo espaço pelos Reis que se succedem, até que felizmente é executado pelo Capitão audacioso, escolhido para uma tão arriscada e aventurosa empreza!?

Um acontecimento de uma tal magnitude não podia deixar de dilatar a alma, exaltar a imaginação, e augmentar os brios da nação por quem permittiu o Supremo Dispensador dos reinos que fosse posto por obra. O contentamento e nobre orgulho do Rei, em cujo reinado a fortuna coroou com feliz resultado as reiteradas tentativas de seus antecessores, respira no preambulo do diploma 1, com que generosamente recompensou o Capitão atrevido, que rematou esta bemaventurada façanha. N'elle resumidamente se substancia o começo, progresso, fim e importancia da descoberta; e tão extensa foi a munificencia, com que o soberano galardoou os que escaparam, que aos proprios calafates deu as franquezas e liberdades de fidalgo.

Quiz mais a sua piedade que um sumptuoso templo se erguesse logo no mesmo logar aonde tinha sido o embarque, para perpetuar a memoria da navegação; e que nos mais ricos panos se tecessem os acontecimentos da viagem, os quaes serviram por muito tempo de adorno na capella real, e n'ella se viam no reinado de seu bisneto El-Rei D. Sebastião.

Seguiu-se uma embaixada ao Pontifice 3, na qual um elefante ricamente ajaezado passeou em triumpho as ruas de Roma como o emblema da Asia, que curvava os joelhos diante da verdadeira religião. Haverá quem queira reputar isto como um acto de servilismo fanatico; porém se nos lembrarmos qual era a Roma de Leão X, o olharemos como a ovação brilhante do poder, gloria e illustração dos portuguezes na capital do orbe catholico, n'aquelle tempo centro da civilisação e das letras. Os panegyricos de todos os embaixadores ali presentes, a concorrencia de tantas pessoas ali reunidas eminentemente illustres, pela sua nobreza e sciencia, exaltando unisonas a magnificencia do soberano, e o valor e excellencia da nação, tornavam este acto mais glorioso do que os triumphos da antiga Roma, quando os Reis manietados seguiam o carro do vencedor ao Capitolio; e com rasão escrevia um dos

1 Vide nota 4.a

2 Vide nota 5.a 3 Vide nota 6.a

da comitiva da embaixada, que n'aquelle dia tinha sua Alteza triumphado da India em Roma, e que não era aquillo obediencia, mas sim triumpho.

Se não faltaram guerreiros illustres que fossem estendendo logo o dominio e gloria do nome portuguez, tambem appareceram promptamente historiadores que se encarregassem de transmittir aos vindouros os seus brilhantes e heroicos feitos. Surgiram os Correias 1, Castanhedas, Barros, Osorios e Coutos para narrarem as proezas gentis dos Almeidas, Albuquerques, Pachecos, Castros e Ataides. O theatro que nascia pelo mesmo tempo se resentia do acontecimento; o auto largou por vezes a fórma da egloga dramatica para tomar um tom mais elevado e n'elle exaltar a gloria portugueza. Gil Vicente é naturalmente grande2 quando celebra e engrandece a fama de Portugal e a põe acima da de todas as outras nações; trechos ha de suas composições dramaticas, que se os descosessemos d'ellas formariam estrophes da ode mais sublime inspirada pelo mais exaltado patriotismo. Nós hoje, que, ainda mal, temos afrouxado um pouco no amor da patria, somos maus juizes para avaliarmos o verdadeiro enthusiasmo no meio do qual eram representados estes seus dramas; e não sabemos dar o devido valor á expansão de sentimentos, que estes despertavam nos espectadores, que mais de uma vez acabavam por hymnos marciaes, em os quaes as vozes de ―ávante Portugal― resoavam unisonas pelas abobadas do paço onde mais de uma vez tinham logar estas representações.

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Quando pois o escopro começava a lavrar a sua epopéa na pedra, a historia abria o seu livro aos mais conspicuos escriptores, quando emfim as artes e sciencias simultaneamente concorriam para dar todo o realce e esplendor aos esclarecidos feitos que tinham levado uma nação generosa ao apogéu da fama; a poesia, esta arte sublime que tira as suas mais elevadas inspirações do amor e da gloria, não podia ficar muda: mas quão ardua empreza se lhe apresentava! Se é verdade que a epopea, pela sublimidade da sua alta composição, pareceu sempre de todos os poemas o mais accommodado para se cantarem as acções

1 Vide nota 7.*

2 Vide nota 8.*

heroicas dos grandes Capitães, ou os acontecimentos mais famosos das nações, por isso mesmo quão escabrosa não é a execução, e quão poucos têem sido os entes privilegiados a quem o deus da poesia soprou alento divino para embocarem condignemente a tuba heroica. Se nos lembrarmos do intervallo que medeou de Homero a Virgilio 1, e d'este ultimo até o vate predestinado para cantar a heroica navegação dos portuguezes, veremos quão extraordinarios esforços faz a natureza para procrear estes astros da poesia, e quaes deviam ser aquelles, quando mais grandioso assumpto, quando um valor mais alto se levantava para ser cantado. Comtudo a providencia divina, que outr'ora sorria sobre os destinos de Portugal, permittiu que depois de tantos seculos devolvidos, se reproduzisse mais uma vez um d'estes phenomenos na pessoa de Luiz de Camões, engenho raro que a uma alma enthusiastica reuniu estro sublime, e uma intelligencia superior, apurada por uma vastissima e não vulgar erudição.

Por uma coincidencia assás notavel, aquelle .nesmo anno (1524) em que baixava á sepultura Vasco da Gar viu nascer tambem o nosso Poeta, permittindo a fortuna, que foi sempre tão fiel companheira do grande navegador portuguez na vida, hemfadar-lhe a morte com o nascimento do illustre Pocta que, tambem atrevido explorador na poesia, seria o primeiro a resuscitar a epopća na Europa, para n’ella cantar a sua aventurosa derrota.

O mesmo anno deu tambem nascimento a um poeta (Ronsard)2 que no reino de França devia ser saudado, bem como o nosso Poeta, com o epitheto de Principe dos poetas do seu tempo. Mas se ambos nasceram no mesmo anno foi debaixo de signos mui differentes: a estima e generosidade de quatro Reis successivos, a graciosa dadiva da infeliz e espirituosa rainha de Escocia Maria Stuart, o enthusiasmo que manifestava pelas suas poesias, bem como o consenso geral dos contemporaneos em o exaltarem, deviam não só tornar-lhe a vida agradavel pela saciedade do amor proprio, mas ainda com todos os confortos e gosos d'ella. E o que até é notavel é que no mesmo anno em que o nosso Poeta saía com o seu Poema á luz, se expedia ao poeta francez, a pedido de Carlos IX, a mercê do habito da ordem de Christo, emquanto o nosso Poeta deveu talvez a algum amigo poderoso o poder apresentar o seu poema immortal ao monarcha portuguez.

1 Vide nota 9.a

2 Vide nota 10.a

Postoque hoje é apurado ter sido o anno de 1524 o que deu o nascimento ao Poeta, nem sempre houve a mesma concordancia de opiniões entre os seus biographos. O Licenceado Manuel Correia, seu commentador e amigo, o faz nascido pelo anno de 1517 pouco mais ou menos. Do pouco porém que elle sabia nos continua a dar prova no decurso do seu commentario, fallando do Poeta depois do seu regresso i patria. «O Poeta via-se em idade de quarenta annos e mais» diz elle: se houvera nascido no anno de 1517 não teria sómente quarenta annos, mas passaria ainda alem dos cincoenta; e um documento por nós descoberto, e que pertence ao anno de 15531, declara positivamente que elle era n'este anno um mancebo.

Manuel de Faria e Sousa, que na primeira vida que escrevêra do Poeta, e que precede o seu commentario aos Lusiadas, seguíra o Liconceado Manuel Correia, collocando o nascimento de Camões no anno Je 1517, foi quem mais tarde pôde fixar definitivamente este acontecimento acabando com as incertezas e tirando o motivo ás contestações. Percorrendo em 1643 o cartorio da Casa da India, teve a fortuna de encontrar no registo das pessoas que de Lisboa passaram a servir na India desde o anno de 1550 até o tempo em que escrevia, e em o titulo de homens de armas o assento seguinte: -«Luis de Camões filho de Simão Vaz e Anna de Sá, moradores em Lisboa a Mouraria Escudeiro de 25 annos barbiruivo trouxe por fiador a seu pai vai na não dos Burgalezes.» Este documento infallivel, esta declaração da idade na presença de seu proprio pae, e em uma estação publica, equivale bem a uma certidão de baptismo em tempo em que não havia registros ecclesiasticos, e é prova irrecusavel para fixarmos no citado anno de 1524 o nascimento de Camões.

Qual fosse a terra que lhe deu o nascimento, esteve tambem por algum tempo indeterminado postoque sem motivo: entre Coimbra, Lisboa, Santarem e Alemquer variavam as opiniões. O soneto c, mal entendido por alguns; o ter sido seu terceiro avô Vasco Pires de Camões, alcaide mór de Alemquer; o nome de uma quinta nas immediações d'esta villa, que ainda no seculo passado conservava o nome de quinta de Camões; e a maneira com que o Poeta se deleita em descrever a mesma villa2, como quem n'ella residiu por algum tempo, na estancia LXI do canto I dos seus Lusiadas, foram talvez a causa de a julgarem pa

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