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Que pois minha pena he sem medida,
Ali não serei triste em dias ledos,

E dias tristes me farão contente.

É proprio da natureza humana, conforme o temperamento do individuo, quando a dor nimiamente nos afflige, fugir á conversação e trato dos homens, repellindo as consolações, embora extremosas, da mais pura e disvelada amizade. Então em um accesso de misanthropia confiamos aos seres inanimados as nossas queixas, e procuramos solidões e retiros, onde em perfeito desafogo demos largas ao sentimento profundo que nos punge o coração. Assim acontecia ao nosso Poeta aqui n'esta selva sombria e triste, n'este antro se recolhia, ou já ao alvorecer do dia em que a alma se eleva toda ao Creador, n'esta hora sublime em que as sombras dispersadas pela luz do dia desenrolam aos nossos olhos a scena de uma nova creação, os montes sobem ao céu, as flores, humedecidas do orvalho da noite, acordam por essas veigas floridas, os mares se prolongam no espaço; ou quando o sol no seu zenith fazia reclamar em um clima tão abrazador o refrigerio das sombras contra a intensidade dos seus raios; ou na hora do crepusculo em que o mesmo astro se ía mergulhar para as partes da patria, para onde lhe voava a alma. Sequestrado do resto do mundo n'este retiro, a saudade o pungia com a lembrança que quanto mais ausente nunca o abandonava, da vida passada, e na sangria do coração magoado, que são as lagrimas, procurava dar desafogo a tão aspero e duro tormento. Outras vezes visitava-o o estro, e inspirado de um arrebatado enthusiasmo repetia ás ondas do mar da China as proezas do pequeno povo do Occidente que o havia devassado. Era espectaculo grandioso, e quasi por si sómente uma epopea viva, ver um poeta entre tantos perigos da vida, e em tão remoto clima, proseguir na continuação de um poema encetado na patria a tanta distancia, e escripto a pedaços nos differentes logares longinquos que discorria com a espada sempre na mão; nem era sem duvida com indifferença que elle compunha e escrevia aquelles tão soberbos como simples versos:

Os portuguezes somos do Occidente,

Himos buscando as partes do Oriente.

Não somos nós em geral da opinião d'aquelles que fazem do infortunio e da desgraça uma forçosa necessidade do genio: todavia esta

mos persuadidos de que, se o Poema portuguez não fosse escripto entre as rajadas do vento e os inhospitos embates das ondas do cabo proceloso, sobre os reparos de uma peça, junto ás baterias de uma fortaleza, ou no campo sobre o broquel do homem de armas, e tinto com o sangue do auctor, molhado pelas ondas do naufragio, crestado com os suspiros ardentes do amante ausente, não offereceria rasgos tão magistraes, nem um colorido tão verdadeiro. E como são tocantes e melancholicos estes lamentos que o Poeta solta pelo decurso do seu Poema! perdoem-me os criticos, acho-lhe um certo interesse que diz perfeitamente com o todo da epopea. De certo, dadas iguaes circumstancias, sempre levará a palma o Poeta aventureiro ao paralytico de gabinete, como com bastante propriedade lhe chama um auctor estrangeiro.

Dois annos, pouco mais ou menos, se demorou o Poeta no exercicio do seu emprego, sendo removido provavelmente antes de tempo, e vindo preso por intrigas, que lhe teceram alguns, que reputava seus amigos, com o Governador Francisco Barreto 1. Voltando de Macau, a nau em que vinha embarcado naufragou na costa de Camboja na Cochinchina. Na correspondencia dos padres jesuitas, em uma carta escripta do Japão, datada do anno de 1559, e dirigida pelo padre Balthasar Gago aos irmãos do Collegio de Goa, achâmos por noticia que a nau se perdeu. A este naufragio allude o Poeta na est. cxxvin do Canto x.

Este receberá placido e brando

No seu regaço o Canto que molhado
Vem do naufragio triste e miserando
Dos procelosos baixos escapado;

Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado

Naquelle, cuja lyra sonorosa

Será mais affamada que ditosa.

D'estes versos se vê que o Poeta vinha preso e antes do tempo acabado, pois diz que n'elle se executava o injusto mando do Governador, isto é, a ordem pela qual vinha preso responder ás accusações que lhe faziam os seus inimigos e os falsos amigos. A este procedimento do Governador Francisco Barreto allude o Poeta na canção x, e mais amargamente se queixa nas oitavas dirigidas a D. Constantino de Bragança.

1 Vide nota 41."

E depois de tomar a redea dura

Na mão do povo indomito, que estava
Costumado á largueza e á soltura

Do pesado governo que acabava,

Quem não terá por santa e justa cura,
Qual de vosso conceito se esperava,
A tão desenfreada infermidade
Applicar-lhe contraria qualidade?

Lemos em memorias officiaes do tempo que estas administrações se achavam no maior desarranjo, sendo excessivamente lesados os interessados. Para dar remedio a estes males, mandou El-Rei D. João III Regimento no anno de 1556, com grandes recommendações ao Governador para fiscalisar sobre os abusos e dilapidações que se faziam. Entendeu Francisco Barreto logo em pôr em execução as ordens da côrte, procedendo a reformas que não podiam deixar de ser feitas com certa severidade e rigor; e não haviam de faltar delatores invejosos, que com accusações verdadeiras ou falsas, como sempre aconteçe, armassem aos logares dos então empregados para os substituirem. D'estes foi o nosso Poeta victima, e a isto e não a outros motivos se deve attribuir a sua perseguição.

No naufragio que padeceu perdeu a fortuna que tinha adquirido, ao que se refere no soneto CLXXII que nas edições antigas encontramos com o titulo de suas perdições; isto nos corrobora mais na opinião que emittimos de ter o Poeta recebido em Macau, ou no seu regresso para Goa a nova da perda da sua amante, pois n'este soneto chora a outra para elle mais lamentavel catastrophe, a morte d'ella:

A cordeira gentil que eu tanto amava,
Perpetua saudade d'alma minha.

Emquanto se reparava do naufragio na bahia de Camboja, escreveu aquellas maravilhosas redondilhas, como lhe chama Lope da Vega, paraphrase pathetica e lastimosa do psalmo CXXXVI, Super flumina, que começam :

1 Vide nota 42.*

Sobolos rios que vão

Por Babylonia, me achei, etc.

.

ou mais algumas poesias do mesmo genero, pois em escriptor contemporaneo se encontram citadas com o titulo de Cancioneiro1, titulo que parece referir-se a uma mais copiosa collecção de que estas poesias faziam parte. Esta composição, na qual o Poeta se mostra tão atribulado pelos trabalhos padecidos e compungido das culpas passadas, tem sido e é de uma difficil interpretação: procuraremos dar-lhe aquella que nos parece mais rasoavel cingindo-nos ao texto. O Poeta, depois de uma grande calamidade e perigo, acha-se em um combate de amor profano, que não pode desarreigar do coração, e do divino, e n'esta occasião não captivo como os hebreus, mas arrojado pelas ondas em terra estranha, faz o protesto de uma reticencia na sua lyra, d'estas muito costumadas, e que os poetas usam fazer e cumprir tanto, como as promessas dos jogadores, reservando-se sómente a tirar d'ellas cantos divinos. O vate que agora era excitado e inspirado de um estylo biblico, acabava de escapar de beber a morte nas ondas do mar; é n'estas occasiões que lembra o Céu, ao incredulo porque duvida, e ao crente porque a esperança sempre consoladora lhe adoça as bordas do vaso negro da morte; e assim como os braços se apegam á tábua que boia sobre as aguas, a alma por crença, medo, ou duvida procura segurar-se å ancora da religião. Os religiosos que andavam nas armadas para soccorro espiritual dos marinheiros e soldados, ou os que em terra missionavam, exerciam com o maior zêlo, energia e devoção christã o ministerio do sacerdocio; e se mais de um louro cresceu regado com o sangue do soldado portuguez nas nossas conquistas, tambem a palma que sobe ao céu floriu regada com o sangue de mais de um virtuoso sacerdote, em toda a parte onde arvorámos a cruz, e á sua sombra a civilisação. Aproveitavam elles estas occasiões, nas quaes a persuasiva cala mais no coração e este se acha mais disposto para abraçar a verdade, em missionarem e confessarem, e era debaixo d'esta influencia que o Poeta escreveu estas redondilhas, nas quaes do modo o mais orthodoxo faz o elogio da confissão auricular, desejando ver-se sempre lustrado das suas culpas como unico e verdadeiro meio com as graças d'este Sacramento. Debaixo da allegoria de Babylonia e Sião, significando esta a terra e aquella o céu, joga este poema feito sem duvida qu antes ou depois de uma confissão, quando teve logar este perigoso episodio da sua vida.

Os versos d'esta paraphrase, em os quaes o Poeta exprime o desejo que a pena d'este desterro seja insculpida em pedra ou no ferro duro,

1 Vide nota 43."

tem feito insistir a alguns, não attendendo a que o naufragio foi na volta da China, que a ida do Poeta para aquelles sitios fôra em resultado de um degredo. Mas se aqui a palavra desterro não é usada em sentido figurado, significando a terra em contraposição à terra bemaventurada que exprime o céu, no primeiro verso d'esta redondilha, como supponho, parece-me que a estes versos se não pode dar n'este caso outra interpretação a não ser, que ao Poeta constou por ordem transmittida, ou outra qualquer via, que ao chegar a Goa se lhe destinava um degredo, postoque a esta determinação me parece que devia preceder sentença da auctoridade judicial d'esta cidade. O que me faz vacillar e inclinar, postoque muito pouco, a esta opinião, é ver que o Poeta larga aqui o thema do psalmo, e se soccorre do livro de Job (Cap. XIX) manifestando os desejos d'aquelle paciente varão, quando se dirige aos amigos que o affligiam injustamente, e enxergar-se n'esta comparação uma paridade com a pouca lealdade que experimentou da parte de homens que falsamente se diziam seus amigos.

A intensidade e dureza do combate que o Poeta experimentava n'esta situação critica da vida revela-se n'estas celebres redondilhas; na 11 o Poeta faz o protesto da violencia com que deixa por Deus os seus amo

res:

Mas deixar nesta espessura

O canto da mocidade,
Não cuide a gente futura,
Que será obra da idade.
O que he força da ventura.
Que idade, tempo e espanto,
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mi poderam tanto,
Que, posto que deixo o canto,
A causa delle deixasse.

Na redondilha que se segue, na qual ratifica a constancia dos seus amores, nos dá a entender quão violento era o sacrificio, pois, como se deprehende de uns versos do poeta Boscan n'ella inseridos, reputava ainda viva aquella que era já um frio cadaver.

Mas em tristezas e nojos,.
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,

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