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Aquella triste e leda madrugada,
Chea toda de magua e de piedade,
Em quanto ouver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena, e marchetada
Saia, dando á terra claridade,

Vio apartar-se de huma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ella só vio as lagrimas em fio,.

Que de hus e de outros olhos derivadas,
Juntando-se formarão largo rio.
Ella ouvio as palavras magoadas,
Que poderão tornar o fogo frio,

E dar descanço ás almas condemnadas.

Cavalheiro delicado, não esquece tambem ao Poeta despedir-se das damas lisbonenses, a quem deveu tantos favores na côrte, e de quem se confessa tão saudoso na carta que escreveu ao chegar á India; isto pois faz o Poeta no seguinte soneto, que é o CLVIII das suas rimas:

Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia essa partida:
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que rasão leva vencida,
Presto verão o fim å triste vida,

Se vos não torno a ver como desejo.
Nunca a noite entretanto, nunca o dia,

Verão partir de mi vossa lembrança,
Amor, que vai comigo o certifica:
Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia

Saudades do bem que em vós me fica.

Tão doces enleios, tão suaves prisões como os encantos da amante, poderiam quebrantar e prender um coração que não estivesse tão escarmentado, uma alma que tivesse sido menos avezada ao infortunio; mas tudo rompe o Poeta com animo decidido. Vejamos com que

energia nos dá o conhecimento d'esta sua irrevogavel decisão no soneto CXXXIX:

Por cima d'estas aguas forte, e firme
Irei aonde os fados o ordenaram,
Pois por cima de quantos derramaram
Aquelles claros olhos pude vir-me.
Já chegado era o fim de despedir-me;
Já mil impedimentos se acabaram,
Quando rios de amor se atravessaram
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com animo obstinado,

Com que a morte forçada e gloriosa,
Faz o vencido já desesperado.
Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde já fazer medo à morte irosa,

A quem tem a seus pés rendido e atado?

Na elegia ш, o Poeta descreve esta sua partida. Que um pensamento amoroso exclusivamente o occupava, que uma paixão violenta o dominava ao abandonar a patria, é o que não admitte duvida, porque elle claramente o refere nas suas amorosas despedidas, e n'esta mesma composição. Quando por ella lançâmos os olhos, sc nos figura estar vendo ainda o Poeta repassado da mais profunda melancholia,

E com hum gesto immoto e descontente,
C'um profundo suspiro mal ouvido,

Por não mostrar seu mal a toda a gente,

saudar com o ultimo adeus de saudade a terra em que lhe ficava a amante. Se o Poeta porém partiu com a idéa de se expatriar, como quem o fazia, segundo elle diz, para o outro mundo, este arranco devia ser o mais doloroso. É verdade que fugia a murmurações que punham nodoa na sua fama, a tenções damnadas, emfim aos laços que lhe armavam os acontecimentos, mas deixava em compensação pae e mãe, e a amante, e emfim amigos, que os teve, devendo assim a dor ser igual á força do sacrificio.

Com animo obstinado, como vimos, como o vencido que se lança desesperado sobre as armas do inimigo, forte e firme rompeu todos os impedimentos e obstaculos, que se lhe offereciam, estes rios de amor,

como elle diz, que se lhe atravessavam para impedir-lhe o passo ao partir; e tal era a força dos trabalhos já padecidos que as derradeiras palavras que disse na nau, foram aquellas de Scipião Africano: Ingrata patria non possidebis ossa mea. E quantas vezes ainda mal esteve para se cumprir a terrivel ameaça!

Apesar de uma resolução que parecia tão decidida por cortar por tudo, e do desejo que as aguas do mar fossem as do Lethes, não pôde mergulhar nas ondas as suas lembranças amorosas. Quanto mais se afastava do logar da bemaventurança já gosada, mais estas recresciam, e o acompanhavam. Ainda as torres da cidade se divisavam, e já elle pedia ás Nereidas, para me servir das suas proprias expressões, que fossem delatar á sua amante o sentimento de tristeza em que o viam, e ellas

Nos meneos das ondas lhe mostravam

Que em quanto lhes pedia consentiam.

Mas seja o Poeta mais fiel interprete para revelar esta borrasca de affectos que lhe opprimiam e despedaçavam o coração em momento tão critico; e d'aqui pedimos já desculpas ao leitor pela liberdade que to- . mâmos n'estas frequentes citações, pela convicção em que estamos do muito que ganha a biographia quando se transforma em auto-biographia..

Soltava Eolo a redea e liberdade,
Ao manso Favonio brandamente,
E eu a tinha já solta á saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente,
A proa a branca espuma dividia,
Com a gente maritima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
Os ventos, namorada Galatéa,
Comsigo socegados os movia.

VI

Das argenteas conchinhas Panopéa,
Andava por o mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene com Ligea.
Eu trazendo lembranças por antolhos,
Trazia os olhos na agoa socegada,
E a agoa sem socego nos meus olhos.

A bemaventurança já passada,
Diante de mi tinha tão presente,
Como se não mudasse o tempo nada.

VII

E com o gesto immoto, e descontente,
Co' hum suspiro profundo e mal ouvido,
Por não mostrar meu mal a toda a gente,
Dizia: oh claras Nymphas! se o sentido

Em puro amor tivestes, e inda agora
Da memoria o não tendes esquecido:
Se por ventura fordes algum' hora

Adonde entra o grão Tejo a dar tributo
A Thetys, que vós tendes por senhora;
Ou já por ver o verde prado enxuto,
Ou já por colher ouro rutilante,
Das Tagicas areas rico fructo;

Nelles, em verso erotico, e elegante,

Escrevei co' huma concha o que em mi vistes;

Póde ser que algum peito se quebrante.

E contando de mi memorias tristes,

Os Pastores do Tejo, que me ouviam,

Oução de vós as magoas, que me ouvistes.

VIII

Ellas que já no gesto me entendiam

Nos meneos das ondas me mostravam

Que em quanto lhes pedia consentiam.

Possuido da mais profunda tristeza seguia o Poeta a sua derrota,-e postoque saísse de uma prisão para sulcar essas ondas livres, quantas vezes não teria saudades dos seus ferros, vistoque esses ferros o prendiam na mesma terra onde existia o objecto dos seus amores.

Estas lembranças, que me acompanhavam

Por a tranquillidade da bonança,

Nem na tormenta triste me deixavam.

Mas ei-lo chegado a esse cabo da Boa Esperança

Começo da saudade que renova;

e é logo recebido por uma tempestade horrivel, d'aquellas com que este cabo vingativo, theatro de tantas tragedias maritimas, costumava mimosear os nossos navegantes. No meio porém de tão grande perigo nunca o abandonava, como vemos, a lembrança da sua dama, e com a morte ante os olhos, o unico pensamento que lhe occorria e que o occupava era se ella se lembraria d'elle. A parte d'esta elegia, que continuâmos a transcrever, na qual, lutando com Virgilio na belleza da forma e na verdade da narrativa, nos descreve esta tormenta, já nos faz adivinhar o grande poeta épico. A esta tempestade devemos talvez a sua inimitavel ficção do Adamastor, em que foi tão excellente e elevado pintor, porque copiou do original.

IX

Porque chegando a Cabo da Esperança,
Começo da saudade que renova,
Lembrando a longa e aspera mudança:
Debaixo estando já da estrella nova
Que no novo Hemispherio resplandece,
Dando do segundo axe certa prova;
Eis a noute com nuvees se escurece,
Do ar subitamente foge o dia,

E todo o largo Oceano se embravece.

A machina do mundo parecia,

Que em tormentas se vinha desfazendo;

Em serras todo o mar se convertia.

X

Lutando Boreas fero, e Noto horrendo,
Sonoras tempestades levantavam,
Das nãos as velas concavas rompendo.
As cordas co' o ruido assoviavam;
Os marinheiros, já desesperados,
Com gritos para o Ceo o ar coalhavam.

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