Imagens da página
PDF
ePub

No ramo vi d'esta ode prorompe com uma affectuosissima apostrophe a Orpheu, que foi mais afortunado conseguindo mover o fero Radamante, e ver a sua Euridice.

O bem afortunado

Tu, que alcançaste com lira soante
Orfeo, ser escutado

Do fero Radamante,

E co' os teus olhos ver a doce amante.

E depois de descrever os effeitos que produziu no lago Estygio a harmonia da musica do cantor da Thracia, rompe em uma exclamação, dirigindo-se à deusa que reina na estancia tenebrosa, onde não podemos deixar de encontrar uma referencia á ama da sua querida Natercia, a Rainha D. Catharina. Quem no seu poema dos Lusiadas não teve duvida em vituperar o comportamento de duas rainhas portuguezas, D. Thereza e D. Leonor, não a teria para se queixar d'aquella que lhe fazia soffrer tão duro tormento, e o contrariava nos seus amores:

XII

De todo ja admirada

A Rainha infernal, e commovida,

Te deu a desejada

Esposa, que perdida

De tantos dias ja tivera a vida.

XIII

Pois minha desventura

Como ja não abranda hua alma humana,

Que he contra mim mais dura,

E ainda mais deshumana,

Que o furor de Caliroe profana?

Na elegia п protesta o Poeta, se acabar no seu desterro, descer a cantar á sombra do Cocyto as perfeições da sua amada, conservando a mesma allegoria d'esta ode.

O tratamento de senhor que se dá n'esta poesia à pessoa, a quem é dirigida, deixa ver bem que o confidente do Poeta era da mais qualificada nobreza. Nas edições das suas obras se diz ser D. Antonio de Noronha, ao que eu me não inclino; isto é, que seja aquelle a cuja morte é dirigida a egloga 1, porque n'este tempo seria de bem poucos annos, e por isso nada affeito para estas confidencias. Fosse porém quem quer que fosse, era amigo seguro e fiel, e em cuja discrição confiava. A elle se dirige o Poeta na variante da elegia, pedindo-lhe, como na carta que já publicámos, novas da amante, revelando-nos por esta occasião o ciume que o atormentava na ausencia, julgando-se preferido por um rival:

Mas o vos charo fiel e doce amigo

Que de amor fero livre e seus errores
Nunqua vistes as maguas que aqui digo
Assi nunqua as vejais nem seus ardores
Abrazem nem congelem vosso peito
Com desejo com supitos temores.
Não passeis nunqua aquelle passo estreito
De serdes desamado e mal querido
Vendo vos sem remedio ser sogeito,
Que a este antiguo vosso amiguo fido

Não negueis um papel que o todo seja
Mais cheio de antre linhas que polido,

No qual só da minha alma novas veja

Que la ficou vaguando nessa terra

Com quem mais que a mi ama e mais deseja.

No anno de 1549, antes de chegarem as naus de viagem da India, chegou em um navio D. Paio de Noronha, que trouxe a noticia da morte do Vice-Rei D. João de Castro e da successão de D. Garcia de Sá, que era já de avançada idade; e querendo El-Rei prover a India de pessoa de respeito que a governasse, nomeou por Vice-Rei, com grandes mercês e auctoridade, a D. Affonso de Noronha, que então estava de volta do Seinal em Ceuta, o qual, logoque recebeu a carta d'El-Rei, se fez prestes para partir com a maior brevidade, deixando a capitania d'aquella praça a seu sobrinho D. Antam de Noronha. Com elle veiu o Poeta com tenção de se alistar pára a India, como com effeito o fez no anno de 1550; porém não foi n'este anno, não sabemos o motivo, mas tres annos depois, como mais adiante veremos.

Foi no intervallo d'esta sua demora no reino, que lhe aconteceu uma nova aventura que o lançou em uma prisão. Se com a aspereza do desterro tinha expiado a culpa de uma paixão infeliz, victima agora de um sentimento igualmente nobre, pagava entre os ferros de uma prisão os excessos da dedicação da amizade.

É a festa de Corpus Christi uma d'aquellas que se celebra com mais pompa em toda a Igreja Catholica. Alem da procissão e mais actos religiosos com que era celebrada, e é na nossa terra, seguiam-se divertimentos, e toda a casta de folgares, em que os nobres e o povo tomavam parte. Passeava n'este dia no Rocio um certo Gonçalo Borges, creado d'El-Rei, e passando pela rua de Santo Antão por trás do convento de S. Domingos, junto ás casas de Pero Vaz, dois homens mascarados, e a cavallo se pozeram a passear e investir com zombarias ao dito Gonçalo Borges, do que se seguiram brigas e arrancar de armas; e prcsenceando o Poeta o conflicto, acudiu em soccorro dos ditos mascarados, por serem seus amigos, e levando da espada, feriu Gonçalo Borges no pescoço. Culpado por este ferimento, foi preso no tronco da cidade; porém passado algum tempo, estando são da ferida sem aleijão, nem desformidade o offendido, obteve o perdão d'El-Rei, attendendo a ser um homem mancebo pobre, e que o ía servir à India aquelle mesmo anno de 1553, o que tudo consta da carta de perdão, que lhe foi passada aos 13 de março do dito anno1. Esta carta foi mandada executar pelo Chanceller da Ordem de Christo o Dr. João Monteiro, e D. Gonçalo Pinheiro, proximamente elevado á dignidade de bispo de Viseu, e ambos desembargadores do paço. O soneto CLXXX, em o qual, debaixo da allegoria de um pinheiro, se dirige o Poeta a uma pessoa de elevada posição social d'este mesmo appellido, dá rasão para acreditar que o bispo, que antes o tinha sido de Tanger na Africa, e que talvez tivesse ali conhecido o Poeta, aproveitasse a sua recente nomeação, para impetrar por esta occasião, como graça especial do soberano, a soltura do Poeta. Se isto é assim, louvores ao illustre prelado, que soube aproveitar a sua influencia para uma obra tão meritoria. Os dois ultimos tercetos são tão claros, que eu, pela minha parte, não ponho grande duvida em acreditar na boa obra do bispo; pois se no primeiro se refere ao alto cargo de que acabava de ser revestido, no segundo o Poeta reconhecido se dispõe a cantar á sombra da sua protecção os seus encomios:

1 Documento C.

Mais lhe concede o filho poderoso
Que crescendo as estrellas tocar possa
Vendo os segredos la do Ceo superno.
Oh! ditoso Pinheiro! oh mais ditoso

Quem se vir coroar da rama vossa

Cantando á vossa sombra verso eterno!

Em todo o caso, o certo é que a nomeação do bispo, e a saída do Poeta da prisão, foram successos que ambos tiveram logar no mesmo mez e anno de 1553, e esta coincidencia dá toda a probabilidade á nossa conjectura.

VII

Do dia em que se lhe abriram as portas da prisão aquelle em que se embarcou para a India, mediaram apenas uns onze dias. Estava então de partida a armada que n'este anno saíu a 24 de Março, levando por capitão mór Fernão Alvares Cabral, com quem o Poeta provavelmente tinha militado na Africa, como deixâmos dito. Tal era o empenho que tinha de abandonar a patria, que se alistou logo trocando com Fernando Casado, e inde nos homens de armas, como consta d'este registro da Casa da India descoberto por Faria e Sousa. «Fernando Casado filho de Manuel Casado e de Branca Queimada, moradores em Lisboa, Escudeiro. Foi em seu logar Luis de Camões, filho de Simão Vaz e Anna de Sá Escudeiro, e recebeu 25400 como os mais.» O padre D. Flaminio, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, profundo indagador de noticias genealogicas, em uns apontamentos seus, traz a copia de um registro da mesma Casa da India, pelo qual consta que fôra fiador do Poeta Belchior Barreto, que julgo que era seu tio, casado com uma irmã de sua mãe, que provavelmente o soccorria na prisão. Comparando os dois assentos da Casa da India que reproduz Faria e Sousa, isto é, o de 1550 com este de 1553, se adverte que vindo no pri meiro indicada a residencia dos paes n'esta cidade á Mouraria, não vem no segundo assento, d'onde infiro que teriam já provavelmente trasladado a sua residencia para Coimbra, onde encontramos Simão Vaz no anno de 1556.

Não achamos em Diogo do Couto informações circumstanciadas da derrota d'esta armada, mas em uma relação do naufragio que soffreu a nau S. Bento ao voltar para o reino, escripta por Manuel de Mesquita

Perestrello', que se achou no dito naufragio, encontramos algumas noticias. Compunha-se de umas cinco naus, e d'estas, estando ainda no porto e á carga, ardeu a nau Santo Antonio.

O resto da armada partiu um domingo de Ramos, 24 de Março, indo o capitão mór na nau S. Bento, a maior e melhor das que navegavam na carreira da India, na qual se embarcou o nosso Poeta. Conservou-se a armada alguns dias reunida, até que, turvando-se os ares, carregaram tão espantosos temporaes, que foi forçoso apartarem-se uns dos outros ajudando-se cada um do caminho que melhor lhe parecia segundo a paragem em que se achavam. A nau do capitão mór, que ía servida de piloto muito habil e muito bem equipada, e na qual ia o Poeta, sobrepujando todos os contrastes que lhe sobrevieram, dobrou o cabo da Boa Esperança, em tempo em que não podia já ir por Moçambique, e lançando-se por fóra da ilha de S. Lourenço, conseguiu surgir aquelle mesmo anno na barra de Goa.

Em varias poesias suas, e especialmente em alguns dos sonetos, o Poeta nos pinta os combates em que lutava o seu coração, nas vesperas da partida de mais tempo meditada e por estorvos impedida, fazendo á sua dama affectuosos protestos de firmeza, nos maiores perigos e na ausencia :

Gentil senhora, se a fortuna imiga,

Que contra mi com todo o ceo conspira,

Os olhos meus de ver os vossos tira,

Porque em mais graves casos me persiga.

Comigo levo esta alma, que se obriga

Na mór pressa de mar, de fogo, e d'ira,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.
Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome
Vos não possão tirar, nem mais perigos.
Antes com som de voz tremulo, e rouco,

Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imigos.

No soneto XXIV temos a descripção da ultima despedida, na qual os dois amantes juntaram as suas lagrimas pela ultima vez na vida:

1 Vide nota 34.

« AnteriorContinuar »