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menta toda a sua ventura, e lhe inveja a dita de estar em Lisboa, onde então residia a sua amante.

O mesmo digo eu tambem,
Porque o mal que eu la passava
Com ver a quem m'o causava
Se me convertia em bem;
E por isso perdoai me,

Se eu brado noute e dia

Venid ora e llevad me.

Como poderá porém pôr em effeito o seu desejo, se uma ordem tyrannica o separa d'ella? se o praso do degredo não será terminado

Senão vindo aquelle dia

Que ha de ser fim de dous annos.

Forçoso é comtudo, emquanto não chega esse dia tão desejado, soffrer com toda a resignação o seu tormento

Pues que suffrir e callar

Conviene a mi pensamiento.

Em uma segunda carta falla de uma refrega com os mouros com aquella mesma indifferença e singeleza com que mais tarde nos descreve a sua primeira expedição na India, mas pelo estylo da descripção se vê que, apesar de ser com pequeno numero de combatentes, foi crespa e soffrivelmente ferida. N'esta carta, depois de pintar a melancholia e saudade que o domina longe da amante, passa a descrever esta escaramuça:

E pois que ja comecei,
Darvos hei conta comprida
De como passo a vida
Nesta vida que tomei;
Vou me ao longo da praia
Sem outros ricos petrechos,
Una adarga ate os pechos
Yen la mano una zagaia.

Vejo o mar embravecer,
Vejo que depois melhora,
Mil cousas vejo cada ora,
Huma só não posso ver:
Assim vou passando o dia
Nesta saudade tamanha,
Mirando la mar d'Espana
Como mengoava e crecia.

Andando só, como digo,

Apartado da manada
Fazendo contas comigo,
Qu'em fim não fundem nada,
Querendo buscar atalho
Para vir ao que desejo,
Vi venir pendon bremejo
Con tresientos de caballo.

Vinhão d'esporas douradas,
E vestidos de alegria,
Com adargas embraçadas
La flor de la Berberia;
Com gritos e altas vozes
Vinhão a redeas tendidas,
Ricos aljubas vestidas,
Em cima sus albernoses.

Gentes de muitas maneiras
E de diversas naçoens,
Corrião a estas tranqueiras
Como a ganhar perdoens;
Mas porque vos não engane
Cousas que outros vos escrevão,
Los bordones que elles llevan

Lanças vos parecerane.

Tudo anda de levanto

Era o campo todo cheo,
Em tudo punhão espanto,
De nada tinhão receo;
Com grandes vozes e festas
Vinhão bradando de lá,
Cavalleros de Alcalá

No os allabareis d'aquesta.

Comigo mesmo fallando
Como s' a outrem fallasse,
Dizia, quem me lembrasse
Do em que andava cuidando;
E porque tamanho dote
Não se alcança por cuidar,
A las armas Mouriscote
S'en ellas quereis entrar.

Contar feitos esquecidos
He muito contra minh'arte,
Houve mortos e feridos,
Houve mal de parte a parte,
Houve homem que dezia
Na força do moor receo,
Donde estás que no te veo
Qu'es de ti esperança mia.

Pois fallo em tão fraca guerra,

Sinal he de vosso amigo,

Visto como estais em terra

Que ha outras de moor perigo:
E pois por vos mais fisera
Quem faz isto que aqui vedes;
Y que nuevas me traedes

Del mi amor que alla era?

Na elegia II a linguagem muda, as badaladas de que falla na primeira carta tinham-se trocado em viva guerra; porém nem a nova terra, nem o novo trato das gentes, nem as armas tão continuadas o podiam

distrahir da sua profunda melancholia. Umas vezes ao longo de uma praia saudosa, esparzia a saudade; outras subia ao monte Abila, e d'ahi considerava a instabilidade do mar, tão analoga á da vida humana: porém nenhuma distracção podia mitigar-lhe a pena, que o coração voava á terra da patria.

Não é aqui logar de descrever os successos militares que se passaram na Africa, no tempo em que o Poeta militou n'estas partes; mas é de suppor que campeava sempre como brioso e denodado cavalleiro n'estas lustrosas cavalgadas e escaramuças, que umas vezes por galhardia, outras por necessidade, diariamente se tinham no campo, ou quando. os nossos guerreiros sequiosos de aventuras desciam a talar-lhes os campos e aduares, ou quando os arabes, que não eram menos guapos cavalleiros, se apresentavam a desafia-los nas suas almogaravias e assaltos com que ameaçavam as nossas praças.

Estes combates tão continuados, de que nos falla o Poeta n'esta mesma elegia, não eram só os que nasciam da necessidade de repellir as incessantes aggressões dos mouros, que não se descuidavam de incommodar os portuguezes; frequentes vezes tinham tambem que montear os leões que vinham mesmo debaixo das muralhas das praças saltearlhes os bois e cavallos. É curioso ler na brilhante e animada prosa de Fr. Luiz de Sousa a descripção de duas d'estas montarias em Arzilla, nas quaes o conde de Borba, sendo capitão d'esta praça, matou dois leões, mandando um d'estes à condeça, que muito aborrecia taes presentes. Mas se nos deleita tanto a pintura fiel do insigne prosador dominicano, ainda mais bello é ver como o nosso Poeta descreve, no canto iv do seu poema, uma d'estas caçadas, nas quaes mais de uma vez tomou parte, quando assemelha o famoso condestavel D. Nuno Alvares Pereira, derrubando os inimigos em Aljubarota, ao leão accossado pelos cavalleiros nos campos de Tetuão:

XXXIV

Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortissimo leão,
Que cercado se vê dos cavalleiros,
Que os campos vão correr de Tetuão;
Perseguem no co' as lanças, e elle iroso
Turvado hum pouco está, mas não medroso.

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Alem da elegia i já citada, e das duas cartas ineditas, em outras composições do nosso Pocta se encontram referencias a este degredo, especialmente na canção п, ode ш e elegia xvi. A canção п e a ode ш, poesias onde conjuntamente, como na elegia I, reina a mesma allegoria dos tormentos do inferno pagão, e feitas sem duvida por este accidente da vida do Poeta, servem para nos explicar esta phase infeliz dos seus amores, e especialmente uma variante da elegia II em um manuscripto que eu possuo, e que o Poeta cortou depois n'esta composição. Na canção, o Pocta descrevendo aquella dor tartarea, como elle chama ao ciume que mais de uma vez lhe corroeu o coração, o assemelha aos tormentos que soffrem os condemnados no reino escuro; e pelos exemplos que escolhe de Tantalo, Ixion e Sysipho, se vê que por intentar, como o primeiro, levar o seu baixo pensamento á altura de uma deusa, abraçou como o segundo a nuvem, e como o terceiro foi condemnado a um duro e eterno supplicio. Na ode ш, feita no mar por occasião em que se dirigia a este degredo, porque n'ella como na elegia 1, composta sobre o mesmo elemento vario das ondas do mar, se dirige ás nymphas maritimas para ouvirem as suas queixas, continua com a mesma allegoria:

XV

Mas que digo, coitado,

E de quem fio em vão minhas querellas?
Só vós (ó do salgado

Humido Reyno) bellas

E claras Nymphas, condoeyvos dellas.

XVI

E de ouro guarnecidas

Vossas louras cabeças levantando,

Sobre as ondas erguidas

As tranças gotejando,

Sahindo, vinde a ver qual ando.

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