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livro de Linhagens de D. Antonio de Lima. Acertou Faria e Sousa, graças as suas investigações e descobertas, com o nome da senhora; porém não lhe succedeu o mesmo emquanto à epocha em que a faz fallecida. O ter morrido moça, e o julgar que o Poeta desgostoso pela sua morte se alistou para a India, foi motivo para pensar que esta tivesse occorrido, pouco mais ou menos, no anno de 1545; comtudo força lhe fazia em contrario o ver muitas de suas poesias escriptas a ausencias e despedidas, e ainda da India, nas quaes suspirava por tornar a ver a amante, de sorte que tendo estabelecido esta hypothese, a maior parte das vezes a despreza nos seus commentarios. N'estas contrariedades não caíria, se tivesse a certeza, como nós temos, que no anno de 1556 ainda era viva.

No livro das moradias da casa da Rainha D. Catharina, apparece o seu assentamento, assignando ella quasi sempre os recibos do ordenado, aindaque algumas vezes por procuração, até o ultimo quartel de 1555 que ainda assigna. No fim porém do anno de 1556 apparece o assentamento de dama de uma irmã d'esta senhora, por esta fórma: «D. Joana de Lima hade haver todo o quartel a razão de 105000 rs. por anno, Etc.a recebeu por si em Lisboa a 30 de Dezembro de 1556. —D. Joana de Lima- Descontou-se 600 rs. de registo do Alvará e 21 rs. de direitos.» Não torna mais a apparecer o assentamento de D. Catharina de Athaide, por onde se collige claramente, e ousâmos dizer sem perigo de errar que por morte d'esta senhora pôde seu pae, pela sua vagatura no paço, obter da Rainha fazer entrar no seu logar est'outra sua filha.

Se D. Catharina falleceu, como conjecturo, entre o segundo e terceiro quartel do anno de 1556, as naus que partiram este anno do reino não podiam levar ao Poeta a noticia de que as sombras da morte tinham escurecido de todo aquelle astro luminoso, que era para elle ainda pharol ondé constantemente tinha a mira, na procellosa vida em que se agitava; mas é de toda a probabilidade, e quasi certeza, que o Poeta recebeu esta tristissima nova no caminho, no seu regresso da China, e talvez já em Goa. No anno de 1559 parece já alludir a ella, quando na elegia (inedita) feita á morte de seu intimo amigo D. Alvaro da Silveira, que teve logar na infeliz empreza de Baharem, exclama:

Foi-se d'aquesta vida o meu Silveira

Tudo o que é bom na outra se ha de achar.

1 Vide nota 31.a

Quem não vê n'esta expressão de dor o profundo sentimento de uma alma extremamente mortificada por uma calamidade recente, que veiu aggravar uma ferida tambem ainda fresca, e que aquelle tudo se referia tanto á morte da amante, como á do amigo? Como se dissera: vou perdendo tudo que tenho de mais caro n'este mundo, que mais tenho n'elle que desejar!

A certeza da epocha do fallecimento d'esta senhora mais alguma claridade lança sobre as poesias do nosso auctor, e as torna mais em harmonia entre si; comtudo difficil empreza é o seguir o labyrinto do enredo amoroso. Assim como sobre os outros factos da sua vida, tão estereis foram as noticias que nos deixaram os antigos biographos sobre esta sua inclinação, que não temos outra fonte a que recorrer, senão as suas poesias, para formarmos um romance conjectural, procurando approxima-lo por uma analyse escrutinadora a certo grau de verdade. Como porém n'ellas incensoú outras damas, e em differentes epochas da sua vida, acresce a confusão, e só d'ellas podemos, com difficuldade, tirar illações -á maneira de um pintor habituado e pratico em distinguir os quadros de um artista, por certas especialidades,— tambem por um certo colorido proprio, toque particular e expressão quando trata d'estes amores. Quem ler pois com attenção as suas poesias, poderá extremar aquellas que são dirigidas a este feiticeiro objecto do seu elevado amor, pelo enthusiasmo com que retrata, pela verdade do sentimento, por uma melancholia que traspassa, e por um relevo que as faz sobresaír ás outras suas composições.

Vejamos agora até que ponto estas nos podem illucidar sobre esta materia. Depois do que havemos dito, inutil cousa é o insistirmos na duvida sobre a identidade da dama; acrescentaremos comtudo, que debaixo do nome de Natercia, que é o anagramma de Catharina, a achamos designada nas poesias do Poeta. Que era uma paixão sublime, se patenteia pelo enthusiasmo com que a exalta em as suas poesias, nas quaes differentes vezes se apraz em a comparar com a Laura de Petrarcha, a quem o Poeta tomou por modelo em muitas partes das suas poesias lyricas. Se não tivessemos a mais evidente certeza da alta jerarchia da dama, as eglogas п e ш nos dariam, não só a certeza d'esta qualidade, mas de que no principio dos amores era de facil accesso, e de trato familiar do Poeta. O mesmo estylo das suas poesias denuncia sempre quando se dirige a uma senhora de elevada posição social, ou de inferior nascimento. Que vivia em ajuntamento de outras donzellas, consta da mesma egloga

Vós me tiraste do meu peito isento,
O pensamento honesto, e repousado,
Ja dedicado ao coro de Diana.

Ainda n'outras poesias a vemos associada a diversas companheiras; umas vezes se dirige o Poeta a umas damas, pedindo-lhes para serem terceiras para com a amante, outras a descreve em um batel que dividia as aguas do Tejo em companhia de

Bellas estrellas, e hum sol no meio.

Em outra occasião é instado, provavelmente, por estas damas, para representar o papel de Paris, e distribuir o pomo á mais formosa.

Atraz fica demonstrado qual era a polidez, encantos, illustração litteraria e fino trato da côrte feminina da Rainha D. Catharina. Damas de um tão raro merecimento não podiam deixar de ser avidamente cortejadas, e adoradas por cavalleiros de uma educação fina e delicada, e em tempos em que o serviço das damas era uma das principaes leis da boa e nobre cavallaria. Os amigos mais intimos de Camões se occupavam em entretenimentos amorosos no paço: D. Manuel de Portugal cortejava a D. Francisca de Aragão, que os poetas d'aquelle tempo nos pintam como um esmero de perfeição, de dotes do espirito e de belleza; João Lopes Leitão dedicava o seu culto amoroso a uma dama do palacio, e pelo soneto ccxxxiv do nosso Poeta, vemos que elle era confidente d'estes amores; D. Alvaro da Silveira ainda na India nutria uma paixão amorosa por uma senhora que deixára em Lisboa, e assim como estes senhores, outros muitos tributavam a homenagem do mais exaltado amor ás damas da côrte, e é provavel que uns aos outros se ajudassem nas suas emprezas amorosas.

Requeriam todavia estes amores grande recato, segredo e discrição, pela severidade das leis que prohibiam o ultrapassar os limites de um honesto trato; mas nem sempre a rasão era mais forte que a violencia do amor, e assim finos amadores se aventuravam os cavalleiros ás mais arriscadas emprezas, para gosarem a doce presença das damas que idolatravam. De um se conta que, tendo por costume entrar por uma torre altissima para fallar á sua dama, e encontrando Carlos V, que sabedor d'esta infracção da policia do paço o esperava, irado lhe perguntou por onde saíria; elle lhe respondeu, que por onde tinha entrado, arrojando-se d'aquella altura. Ao seu valido mandou El-Rei D. João I

executar, por entrar de noite no paço, e Diogo de Sousa ordenou El-Rei D. Affonso V que fosse degolado pelo mesmo motivo; e tal era o melindre a este respeito, que a João Lopes Leitão, amigo do nosso Poeta, só por entrar contra vontade do porteiro das damas para as ver, mandou El-Rei D. João III prender em sua casa:

Mas isto tem o amor, que não se escreve
Senão donde he illicito, e custoso;

E donde he mais o risco mais se atreve.

Apesar pois das difficuldades que offerecia uma inclinação tão perigosa, tinham os dois amantes arte de se fallarem, como sempre acontece. Por horas de sesta ou lá por alta noite, quando não ha outras testemunhas mais que as estrellas, ella apparecia a uma janella qual assoma no céu a lua mysteriosa:

E como te não lembras do perigo,

A que só por me ouvir te aventuravas,

Buscando horas de sesta, horas de abrigo?

E quantas vezes não invocou elle essa janella tão tardia em descortinar essa visão do céu! quantas vezes não desejou abraza-la com uma chamma, das que resplendeciam no seu coração!

Ventana venturosa do amañece, etc.

Outras, mais feliz, pôde elle junto à sua dama beijar-lhe a mão nevada, requeimar-lh'a com ardentes beijos, e aperta-la contra o coração abrazado de amor

Fermosa mão que o coração me aperta, etc.

Enlevado no enthusiasmo do mais apaixonado amor, e com tão doces contentamentos lhe corria a vida, feliz se podesse assim continuar; porém tanta ventura não podia durar muito: a fortuna adversa e varia, que lhe foi sempre tão importuna companheira, deitou por terra tão grande gloria. Vicissitudes as mais agras succederam a tanta doçura de vida; quaes estas foram, se colhe da canção 11, eglogas I e II e outras

suas poesias. Na egloga i se queixa a sua dama da sua ousadia, falta de segredo e da doudice com que a amára:

Mas teu sobejo e livre atrevimento,
E teu pouco segredo, discuidando,
Foi causa deste longo apartamento.

E pois de teus descuidos, e ousadia,
Naceo tão dura e aspera mudança,
Folgo, que muitas vezes to dizia.

Pretenções que não se casavam com o decoro e castidade da dama, indiscrição no fallar, parece que foram as culpas do Poeta, que o lançaram d'este paraizo para o mais triste abysmo, e a que acresceram causas estranhas.

N'esta mesma egloga, na qual de alguma maneira imita o triumpho da morte de Petrarcha, com a differença que aqui metamorphoseia a sua dama, conjuntamente com a accusação que esta lhe faz, o Poeta apresenta a sua justificação:

Não es tu de saber tão falto e rudo,

Que tão sem siso amasses, como amaste.

ALMENO

Onde viste tu Ninfa amor sesudo?

Se mas tençoens poserão nodoa fea
Em nosso amor, de inveja pura,
Porque pagarei eu a culpa alhea?

Como vemos pois, alem do pouco disfarce, e cautela que houve por parte do Poeta, a inveja e murmuração deram publicidade a estes amores, o que parece ter sido mal soffrido por elle, dando logar a alguma desavença que mais serviria a aggravar-lhe a sorte e accelerar-lhe o fim.

VI

Publicados estes amores, foi necessario á dama quebrar uma relação que lhe era tão cara, ou porque o decoro e reputação o exigia, ou para

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