Imagens da página
PDF
ePub

Miranda foi o mentor litterario de Diogo Bernardes, e João de Barros de Damião de Goes (de quem era compadre), nos persuadimos que Bernardim Ribeiro o foi de Camões, a quem o Poeta chamava o seu Ennio, e que lhe communicou o romance da Menina e Moça. Confirma-se isto com algumas imitações salientes de Bernardim, que apparecem nas obras de Camões 1, escriptas na sua mocidade antes da sua partida para a India, e quando ainda não estava impresso o romance d'aquelle poeta, que devia ser vedado ao maior numero de pessoas, e apenas confiado a amigo intimo pelo alto assumpto a que pretendem que dizia respeito. Estas relações que se contrahem com o ancião que por longos annos se curvou sobre os livros, e folga com a ambição de fazer desenvolver um talento que, sem ser guiado, se tornaria talvez esteril, assim como o desejo do mancebo que respeitoso anhela por beber as lições da experiencia, são bem conhecidos de todos aquelles que prezam a carreira das letras.

Era o paço o ponto de reunião onde concorriam aos saraus os fidalgos, para ostentarem a sua galantaria e talento nos versos que dirigiam ás damas, capitaneando-os n'estes certames poeticos e amorosos o infante D. Luiz. D. Manuel de Portugal, o Mecenas do Poeta, era n'aquelle tempo um dos mais brilhantes adornos d'este circulo, e como lhe chama Francisco de Sá de Miranda, o lume do paço; e D. Francisco de Portugal, seu parente, nos assevera o mesmo, dando-nos na sua Arte de Galantaria, noticia da etiqueta que se seguia na côrte quando um cavalheiro dirigia versos a uma dama. N'estes ajuntamentos, não só pela qualidade de seu nascimento, como, provavelmente, por intervenção do seu Mecenas, teve accesso o nosso joven Poeta, e ahi pela jovialidade de seu genio, e pela superioridade do talento e conhecimentos, devia dar um contingente não escasso de amabilidade e illustração, para estes passatempos recreativos em os quaes os nossos reis antigos se deleitavam em companhia de seus subditos.

Mas qual era o distincto areopago feminino, o tribunal de Amor que devia julgar do merecimento scientifico, e devia distribuir a coroa de louro ao poeta mais insigne, é o que não será fóra de proposito fazer conhecer, dando aqui noticia de algumas das damas que n'aquelle tempo abrilhantavam a côrte da Rainha D. Catharina.

Resplandecia como sol luminoso entre estes astros a princeza D. Maria, que por conselho da Rainha D. Leonor se tinha dado ao estudo da

1 Vide nota 29.a

lingua latina; e com quanta graça e elegancia escrevia n'ella póde ver-se em uma carta sua que a mesma Rainha escrevia para França. Reunia no paço uma academia de senhoras illustres pelo seu saber, com quem se occupava em exercicios litterarios, e eram suas inseparaveis companheiras as duas Sigéas, Angela e Luiza Sigéa; esta ultima, não só versada na lingua latina, mas ainda na grega e hebraica, mereceu do papa Paulo III uma carta em agradecimento à offerta do seu poema latino da descripção de Cintra.

D'esta senhora e da celebre Joanna Vaz, achámos assentamento acrescentado, no livro das moradias da casa da Rainha D. Catharina, com mais 65000 réis de ordenado com as verbas de Latinas, isto é, provavelmente mestras das outras damas. D. Leonor de Noronha, filha do marquez de Villa Real, traduzia do latim a Marco Sabelico; Paula Vicente, filha do celebre comico Gil Vicente, ahi apparece com o assentamento de tangedora, ao que se deprehende mestra das donzellas, bem como se encontra outra verba a um certo Antonio do Valle, como mestre de dansa. Não só pois com o seu exemplo procurava a Rainha que as donzellas e damas, estas mimosas flores que medravam no seu palacio, fossem o modelo de uma educação catholica e virtuosa, mas que esta fosse alem d'isto polida e viçosa com o esmalte das sciencias e prendas delicadas. Não admira pois que o Poeta no outono da vida as invocasse no seu poema, na falta de protecção que encontrava n'aquelles que andava cantando, e que tinham os ouvidos surdos para escutarem a sua melodiosa poesia, se alentasse com tão precioso valimento, e lhe fosse tão penoso o abandona-lo, como consta das suas despedidas; custando-lhe tanto a acostumar-se a essas damas da India, ás quaes se lhes fallava alguns amores de Petrarcha ou Boscan, respondiam, como o Poeta diz metaphoricamente, n'uma linguagem mesclada de hervilhaca que travava na garganta do entendimento. Nada d'isto admira, se nos lembrarmos especialmente que no côro d'estas damas se achava a sua amante, que o inflammava e servia de vehemente despertador ao seu estro maravilhoso.

O primeiro que nos dá noticia d'estes amores do Poeta no paço é Pedro Mariz no prologo biographico que precede a edição dos Lusiadas de 1613, asseverando, que alguns diziam que o Poeta se vira homisiado ou desterrado por uns amores no paço da Rainha: comtudo alguns biographos têem querido, a nosso ver, sem fundamento algum, duvidar da existencia d'estes amores. Em escriptor quasi contemporaneo, nos commentarios manuscriptos de D. Marcos de S. Lourenço, achámos ultimamente a noticia d'estas relações do Poeta no paço, pois commentando

a est. xvi do canto II dos Lusiadas, diz: «Estas Naiades erão as damas do Paço, as quaes se hião recrear aquellas florestas (de Cintra) com as Rainhas de Portugal em quanto Deus quiz que elle gosasse destes mimos dos quaes por que não soube uzar veio a carecer delles.» A egloga xv, descoberta por Faria e Sousa, nos deu a conhecer o nome d'esta senhora, quando apenas sabiamos pela tradição e memoria de Pedro Mariz, que era uma dama do paço; traz este titulo no manuscripto descoberto pelo commentador: « Egloga de Luiz de Camões, á morte de D. Catherina dama da Rainha;» e com o mesmo nome vem no outro manuscripto contemporaneo de Luiz Franco; e mais claramente o Poeta o revela em uma poesia sua acrostica (inedita) onde o seu nome se encontra associado com o da amante.

MOTE

Fume desta vida
eja-me esse lume
a que se presume
em o ver perdida.

VOLTA

oncedei luz tal

quem vos cegaste, oda me tiraste

essa só me val: asão he querida

a vir do alto cume Zorte de tal lume

alma tão perdida.

esatando hide
sta treva escura
→urora onde pura
➡oda luz reside:

y que atada a vida
a com esse lume
eixa o seu queixume
stima-se por perdida.

Do que fica dito, alem de uma memoria contemporanea de um frade1, que foi o proprio confessor de uma senhora que assim se nomeava e appellidava, e pelo qual consta que existia o rumor, não só d'estes amores, mas do desterro por sua causa, nos parece não poder já pôr-se em duvida, sem risco de scepticismo, a existencia d'esta inclinação amorosa do nosso Poeta. Mas como existiam duas senhoras do mesmo nome e appellido, servindo ambas no emprego de damas da Rainha D. Catharina, ao mesmo tempo que o Poeta frequentava a côrte e o paço, cumpre distinguir qual d'estas senhoras foi a amante do Poeta. Era uma d'ellas D. Catharina de Athaide, filha de Alvaro de Sousa, terceiro filho de Diogo de Sousa Castellano de Arronches, Senhor de Vagos, Eixo, Requeixo e outros logares no termo de Aveiro, mordomo-mór da Rainha D. Catharina, e casado com D. Filippa de Athaide, filha de Christovão Correia, commendador de Alvalade, de quem teve, alem de outros filhos, esta D. Catharina de Athaide, que foi dama da Rainha D. Catharina e morreu moça, pouco tempo depois de haver casado com Ruy Pereira de Miranda Borges, senhor de Carvalhaes, e jaz sepultada na capella mór do extincto convento de S. Domingos de Aveiro, onde tem um epitaphio pelo qual consta que fallecêra aos 28 de Setembro de 1551. Em uns apontamentos manuscriptos contemporaneos, datados do anno de 1573, que existiam entre os papeis d'este convento, e escriptos por um frade por nome Fr. João do Rosario, havido em grande credito, conforme a tradição do convento, e que se diz ter sido confessor d'esta senhora nos ultimos tempos em que vivêra, se lêem estas palavras:

«E toda las vezes que no Poeta desterrado por ssa rasão lhe falava, sempre em reposta havia que assim não era, e que fora aquela alma grande, que para emprezas grandes, e a regioens tão apartadas o le

Vara.»

Como pois á vista de expressões tão terminantes póde duvidar-se que na terra vogava a noticia confusa da catastrophe amorosa do Poeta que despertou a curiosidade do confessor a fazer preguntas, e quiz talvez, sem offensa do proximo, deixar n'esta memoria illibada a reputação da dama, da mais ligeira suspeita a este respeito? Pela delicada negativa que esta faz, se vê, que abstrahindo de si a imputação que se lhe fazia, se absteve de nomear a outra senhora, não só por amizade e deferencia com a companheira, mas porque talvez rasões mais fortes a impelliam a guardar o segredo exigido, pois é natural que para o procedi

1 Vide nota 30."

mento que houve para com o Poeta, se procurasse disfarce e pretexto como mais de uma vez acontece em casos taes, o que se pode mesmo suppor da benignidade da Rainha D. Catharina. Mas da mesma resposta se vê que se esta senhora não era a amante do Poeta, ella foi a amiga sincera e enthusiasta, e do numero d'aquellas senhoras a quem o Poeta se confessava grato, e cheio de muitas mercês e favores.

Não sendo portanto esta, cumpre averiguar qual era a verdadeira amante do Poeta. D. Antonio de Lima, no seu livro das linhagens, nos diz quem eram os seus paes; o qual mencionando os outros filhos de D. Antonio de Lima, diz: «...e a D. Catherina de Ataide que sendo dama da mesma Rainha D. Catherina, morreu moça no paço.» Era esta senhora pois filha de D. Antonio de Lima, que foi mordomo-mór do Infante D. Duarte, filho d'El-Rei D. Manuel, e depois camareiro-mór do Duque de Guimarães seu filho, e commendador de Cocujaens da Ordem de Christo, e era quarta neta do Visconde de Villa Nova da Cerveira D. João de Lima, que foi casado com D. Catharina de Athaide, filha de Gonçalo de Athaide, senhor do morgado de Gajão em Santarem. Foi esta senhora, filha de D. Antonio de Lima, a dama que morreu no paço, como consta, não só da asserção do genealogico, mas do epitaphio seguinte feito por Pedro de Andrade Caminha.

Á SR. DONA CATHERINA D'ATAIDE

FILHA DE DOM ANTONIO DE LIMA

DAMA DA RAINHA

EPITAFIO XII

Aqui jaz escondida aquella Dama
Fermosissima e rara Catherina:
Que no mundo terá gloriosa fama,
De cuja vista a terra foi indina.
Aqui chorou o Amor, e daqui chama
Que nesta pedra, de tod'honra dina,
Cantem immortais versos, e louvores

A Fermosura, as Graças, e os Amores.

Não sei pois o motivo por que os biographos até hoje se têem obstinado em a fazerem filha do Conde da Castanheira, erro que facilmente teriam emendado, se se quizessem dar ao trabalho de examinarem o

« AnteriorContinuar »