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VIDA DE LUIZ DE CAMÕES

I

A obra maravilhosa da creação do globo que pisâmos foi por muito tempo desconhecida á maior parte dos seus habitadores, isolados, dispersos e separados por diversas regiões, até que uma nação, tão pequena em territorio como grande pela gentileza das suas façanhas, pelo ultimo quartel do seculo xv, deu ao mundo o espectaculo mais grandioso, abrindo por entre mares procellosos não conhecidos, povoados não só de perigos reaes, mas ainda de phantasmas fabulosos que a imaginação do homem tinha creado, uma nova estrada para o Oriente, para o abrilhantar com os mais heroicos feitos, levando a luz do Evangelho até os confins da terra, arvorando a Cruz sobre as ruinas da mais barbara e estupida idolatria, estendendo a escala de um vastissimo e dilatadissimo commercio, e ligando os povos por novos e mutuos laços de concordia e civilisação. Se o primeiro homem pasmou absorto ao contemplar as obras da creação dos sete dias, não foi menor o assombro de uma grande parte de seus descendentes, quando rasgando-se o véu que cobria tantas ignorancias viram de subito alargar-se o mundo, e apparecerem novos astros, novos climas, novas raças, nova vegetação, novos usos, novos costumes; mas tambem, triste fatalidade das cousas humanas, novas precisões, novas enfermidades e novos elementos para

a morte!

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Do alto do Vaticano abençoou logo o Pae commum dos fieis os nobres esforços e ousadia dos soldados de Christo e da civilisação, e as bôcas mais eloquentes dos estrangeiros se abriram voluntarias para victoriarem a acção estupenda da nação grandiosa, instrumento do mais glorioso acontecimento que jamais se inscreveu nos annaes dos povos.

O celebre Frascator dá como uma prova da clemencia divina não ter de todo abandonado a Europa no meio de todos os revezes de que o Poeta foi espectador no seu tempo (tempestades, guerras, pestilencias, cidades incendiadas e arrazadas, inundações e todos os mais generos de castigos e flagellos) o complemento d'esta importantissima descoberta; e escriptor estrangeiro houve tão enthusiasta3 que julgou que só nos astros podia ser escripta, pondo os nomes de D. Manuel, Vasco da Gama e mais portuguezes, aos promontorios e estreitos que pretendeu descobrir no planeta de Venus.

Podendo acontecer que este meu trabalho, pela importancia do assumpto, transponha os limites da patria, permitta-se-me que reuna o que em o mais elevado estylo melhores pennas disseram em louvor da nação que executou tão portentosas conquistas. Seja o primeiro o nosso celebre Pedro Nunes que a ellas assistiu, e creou discipulos que munidos da sciencia e do valor foram n'ellas com as mais gloriosas acções immortalisar os seus nomes; o segundo, um estrangeiro que escolheu por patria adoptiva esta terra, que illustrou com os mais proveitosos trabalhos litterarios; e remate este pregão da gloria portugueza um escriptor contemporaneo, que embora adversario do Poeta, cuja vida escrevemos, expiou a sacrilega audacia que lhe soprou o amor proprio, exaltando na prosa a mais sublime o valor e sabedoria da nação, - cujos altos feitos ousou cantar em competencia com o archi-Poeta portuguez.

«Não ha duvida (diz Pedro Nunes) que as navegaçoens deste reino de cem annos a esta parte são as mayores: mais maravilhosas: de mais altas e mais discretas conjeyturas que as de nenhuma outra gente do mundo. Os Portuguezes ousarão cometer o grande mar occeano: entrarão por elle sem nenhum risco: discobrirão novas ylhas, nova terra, novos mares, novos povos e o que mais he: novo ceo e novas estrellas e perderão lhe tanto o medo que nem a quentura da torrada Zona: nem o descompassado frio da extrema parte do Sul com que os antigos es

1 Vide nota 1.a

2 Vide nota 2.a

3 Vide nota 3.a

criptores nos ameaçavão, lhes poude estorvar: que perdendo a estrella do Norte, e tornando a a cobrar: discobrindo, e passando o temeroso Cabo da Boa Esperança: o mar de Ethiopia: de Arabia: de Persia poderão chegar a India. Passarão o rio Ganges tão nomeado: a grande Taprobana e as ylhas mais orientaes. Tirarão nos muitas ignorancias: e amostrarão nos ser a terra mor que o mar: e aver hi Antipodas: que ate os Santos duvidarão: e que não ha região que nem por quente, nem por fria se deixe de abitar. E que em hum mesmo clima e igual distancia do Equinocial ha homens brancos e pretos e de mui diferentes calidades. E feserão o mar tão cham que não ha quem hoje ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ylha: alguns baixos: si quer algum penedo que por nossas navegaçoens não seja ja descuberto. »>

O padre D. Rafael Bluteau, na sua Oração funebre de El-Rei D. Manuel, descreve de uma maneira não menos energica que engenhosa a sublimidade e importancia das conquistas emprehendidas e executadas pelos seus compatriotas adoptivos, com o mesmo fogo e enthusiasmo como se entre nós tivesse tido o nascimento. Ouçâmo-lo: «Na opinião de Ptolomeo, e dos mais celebres Cosmografos, nam contem o Globo da terra mais que sete mil, e quinhentas legoas de circuito, e se bem lançarmos as contas, nam menos que sete mil, e quinhentas legoas de costa grangearão as Conquistas d'elRey D. Manoel ao Reino de Portugal; desde o Cabo da Boa Esperança na Cafraria, ate o cabo de Liampó na China quatro mil legoas, no que rodeão as prayas de Ormuz, e do mar vermelho mil, e duzentas legoas; no Brazil começando da boca do Rio das Amazonas, ate a entrada do Rio da prata, mil e quarenta legoas; na Africa, toda a vastidão daquella grande Provincia que contem as Comarcas de Xerquia, Gerabia, e Dabida, e outros Senhorios, Cidades, Emporios e Castellos, que nam cabendo na memoria por inumeraveis, so cabem na admiraçam por conquistados, pello que, se conforme testemunha Santo Isidoro, concederão os Romanos a Octaviano Cesar o titulo de Augusto, por augmentar o Imperio, razam he, que ajuntemos o nome de Augusto ao de Manoel, não só, por que augmentou o Reino de Portugal, senão tambem porque acrecentou o Imperio de Christo. >>

E mais adiante continua o illustre e sabio Theatino, narrando a maneira com que este pequeno povo de heroes abroquelou impavido a Europa das invasões do islamismo, emquanto as nações cegas se debatiam em guerras fratricidas e infructiferas. «No mesmo seculo, e quasi ao mesmo tempo, (prosegue o panegyrista) deram principio as suas con

quistas, Mahamet, e elRey D. Manoel; Mahamet no anno de 1447, e elRey D. Manoel no anno 1497, ambos de dous com forças tão iguaes, e com succesos tam semelhantes, que quanto tirou Mahamet ao Reino de Christo, tanto tirou elRey D. Manoel ao Imperio de Mafoma; Rende Mahamet ao poder das suas armas a irmaa de Roma, e a Metropoli do Oriente, Constantinopla, rendem se tam bem á victoriosa espada d'elRey D. Manoel as Rainhas do mar Oriental, e as Emperadoras dos Imperios, Goa, e Malaca; recebe Goa com os primeiros rayos da fee, as luzes de hum melhor Oriente, e as tres mil peças de artilharia, que vomitavam incendios para a defensa de Malaca infiel, publicão com bocas de fogo os triumfos de Malaca Catholica; Entra Mahamet no Peloponeso, entra elRey Dom Manoel em Ceilão, que desconhecendo os seus thesouros, adora entre matas de Canela, o madeiro da Cruz; entre mares de Aljofar as agoas do Bautismo, e entre serras de Cristal as Chagas de Christo., Apodera-se Mahamet da Natolia, e da Grecia, avasalla elRey Dom Manoel o grande Imperio do Abexin, sojuga o Reino de Ormuz, e dilata a fee, ate nas angustias do estreito Persiano; sogeita-se ao Cetro de Mahamet a Albania, a Jarza, o Negroponto com as duas ilhas de Lemno e Metilene, conquista elRey Dom Manoel o Reino de Mombaça, e de Quiloa, toma as duas famosas ilhas de Moçambique no mar Atlantico, e de Zocotorá no mar vermelho, e arvorando os estandartes da fee nas immensas Provincias do Brasil, somete ao dominio da Igreja hum novo mundo: finalmente pelejou o nosso invictissimo Monarca, com tão grandes perdas do Paganismo, e com tão prodigiosos augmentos da Religião, que não sei determinar, se forão mais as fortalezas que derrubou, ou os Templos que eregio, os Exercitos que passou ao fio da espada, ou os Imperios que reduzio a fee de Christo. >>

Mas é sobretudo na eloquentissima prosa de um dos mais celebres oradores do nosso seculo, que o valor da nação portugueza é levado aos astros de uma maneira tão sublime, que não duvidamos dizer que n'esta parte da dedicatoria do seu poema (embora na poesia fosse vencido por tão nervoso athleta como o grande Poeta portuguez) elle leva a palma a quanto na prosa a mais elevada se podia dizer sobre o assumpto. Eis como se expressa o auctor do Oriente na sua dedicatoria á Nação portugueza: «E porque não direi eu, que sobre estes fundamentos se deve erguer immortal e perenne a tua memoria, ó grande, ó respeitavel Nação portugueza? Nasceste e cresceste por armas, e conquistas; dilataste com tua espada os confins de teu desmedido Imperio, e com ella te foste lavrar a coroa de finissimo ouro, que ainda até hoje

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