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amores, durante o tempo que cursou a Universidade, epocha que o sr. bispo de Viseu marca entre os annos de 1539 a 1544, pouco mais ou menos, isto é, desde os quinze aos vinte annos de idade: agora veremos, quão provavel, melhor disseramos é verdadeira esta sua conjectura. Diz o Poeta na sua carta primeira que em Lisboa passára elle tres mil dias de más linguas, peiores tenções; isto é, oito annos e oito dias, tempo que se deve entender depois do seu regresso de Coimbra. No anno de 1553 saíu o Poeta para a India: se subtrahirmos oito annos teremos o anno de 1545, e tirando mais tres annos para os dois degredos do Tejo e de Africa, pois de dois nos parece que temos a certeza no praso marcado para o segundo na carta (inedita) escripta de Ceuta 1, em que diz

Senão vindo aquelle dia

Que hade ser fim de dous annos

teremos que concluiu os seus estudos em 1542, e regressou a Lisboa n'este mesmo anno ou no seguinte.

Se pela salubridade da terra, amenidade de seus ares, tranquilla quietação do sitio, é Coimbra terra aptissima para a mais seria applicação dos estudos, não são de menos incentivo para a imaginação do amante apaixonado as bellezas da natureza que circumdam a cidade ridente. Oh! e quanto estas não influem para exaltar a phantasia do amante e poeta, repassar o coração d'esta doce melancolia que arroba a existencia e se transvasa em caudalosa poesia! E que poesia e encantos topographicos não encerra a terra onde repousam as cinzas do fundador da monarchia! Galas da natureza, tradições historicas, tudo ali concorre para tornar este sitio o mais romantico e encantador. Ali se espreguiça o rio transparente, acolá, em suas aguas, se espelha a lapa mysteriosa, os valles sombrios serpenteiam por entre os montes, enxerga-se ali o penedo da Saudade, aqui nos sentamos junto à fonte dos amores (onde já choraram olhos reaes) com seus annosos cedros de triste recordação, que attestam o feroz sacrificio executado em uma pomba de amor; acolá um filho seu ha de, pouco tempo depois, renovar a mais sanguinolenta tragedia, immolando a um inconsiderado ciume a esposa infeliz. E por que não havemos juntar ás curiosidades topographicas d'esta cidade o freixo de Camões?? Mocidade estudiosa que cursaes a nobre carreira

1 Vide nota 27.a

2 Vide nota 28.a

das letras, a quem inflamma o fogo sagrado da poesia, procurae-o, percorrei esses campos, descei ao valle, e quando virdes uma arvore secular, se á sua sombra sentirdes que a vossa alma se agita áquelle

Est Deus in nobis, agitante calescimus illo,

que as idéas borbulham, o estro toma o vôo arrojado da aguia, tende a certeza que haveis encontrado a arvore do Poeta.

V

Achava-se o Poeta n'aquella quadra da vida do homem, na qual se torna uma necessidade o amar; no ardente estio da mocidade, quando o coração limpo de todas as outras paixões do interesse ou de ambição, que mais tarde, no outono da vida, se lhe arreigam, se abre todo a receber esta paixão violenta e doce, reflectindo-se n'elle as impressões que lhe pintou uma escaldada imaginação. Uma sede impetuosa nos abraza, e esta ou se refrigera em varias fontes, e eis o amor physico e corrompido, ou se concentra em um só objecto, e fórma esta voluptuosa e suave paixão que acha lenitivo na mesma pena, e eis o amor platonico, romantico e apaixonado de um Mancias, um Petrarcha, um Bernardim Ribeiro. Isento d'este amor puro passou o Poeta algum tempo, em continuada inconstancia, em entreter damas com bons ditos, engana-las com falsos galanteios, e até em despreza-las; ao que lhe dava azo e o afoutava o muito apreço que d'elle faziam, pela excellencia do seu engenho que agradava e começava a scintillar em suas poesias.

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Tão sacrilega esquivança não podia deixar de chamar uma pena igual ao delicto: não tardou muito que o amor se vingasse tomando-o nas suas redes, cujos nós, conforme o Poeta latino, tão difficeis são de se romperem. E como podia o Poeta, como elle mesmo diz, livrar-se por

ventura

Dos laços que amor arma brandamente?

Dotado de um coração sensivel, uma alma enthusiastica, como podia ser indifferente a tanta formosura, discrição e virtude, como nos deixou encarecido nas suas poesias? Era preciso não ter olhos para ver, nem coração para amar. Se o Poeta porém foi tão feliz que soube subir com o pensamento a tanta altura, é tambem não pequeno documento

do bom juizo da dama a preferencia que soube dar a um homem de um merito tão singular e de qualidades tão raras.

No dia o mais solemne, do anno, em o qual a Igreja vestida de luto celebra o anniversario da morte do Homem-Deus, foi que o Poeta viu no Templo o objecto encantador dos seus amores, em o que se encontrou em uma perfeita coincidencia com o mesmo começo que teve a inclinação de Petrarcha com a celebre Laura.

O soneto LXXVII, que é quasi uma traducção do I do Poeta de Ferrara, fez duvidar a alguem d'este accidente da vida do Poeta, julgando que elle se tinha limitado a traduzi-lo sem o referir a si proprio; o seguinte soneto porém (inedito), escripto ao mesmo assumpto, o testifica com toda a evidencia.

Todas as almas tristes se mostravão

Pela piedade do Feitor Divino,
Onde ante o seu aspecto benigno
O devido tributo lhe pagavão.
Meus sentidos então livres estavão

Que ate hi foi contente o seu destino,

Quando huns olhos de que eu não era dino

A furto da razão me salteavão.

A nova vista me cegou de todo,

Naceo do descostume a estranheza
Da suave e angelica presença.

Para remediar-me não ha hi modo.
Oh porque fez a humana natureza

Entre os nascidos tanta differença!

Foi ao ver esses olhos formosos levantados ao céu em fervorosa supplica, essas mãos de alabastro erguidas ante o throno do Eterno, que elle, quando menos pensava, foi ferido d'esse amor romantico e apaixonado que depois tanto influiu na sua agitada e tormentosa vida. Mas se alguma vez vistes uma formosa dama orando com os olhos erguidos ao céu, com que o ar serena, ou já em recolhida e meditativa contemplação, e o vosso coração vos disse alguma cousa, por certo desculpareis este desvio do nosso Poeta no templo, esta adoração do Creador na creatura.

O supracitado soneto, em o qual o Poeta nos revela o principio das suas relações amorosas, termina com uma exclamação contra a desigualdade entre os nascidos, porém não explica se allude à differença de um

nome illustre, se á falta de meios pecuniarios. Não faltavam a Camões. avós illustres, como temos visto; porém se a nobreza se abate pela ausencia dos bens da fortuna, descendente de um ramo segundo da familia, não poderia sustentar o esplendor de seus ascendentes; por isso como sempre acontece, devia ser reputado como inferior pelos paes da senhora a quem tributava a homenagem do seu amor. Restava-lhe comtudo uma esperança, a de buscar com honra uma fortuna honesta, para sustentar o lustre de seus antepassados era a sua espada. Um mancebo que depois mostrou disposições tão generosas, não podia ser indifferente em quinhoar a gloria e perigos de seus compatriotas, e com este intento, terminados os seus estudos, regressou de Coimbra a Lisboa. Nos sonetos cxi e cxxxiii, em os quaes o Poeta se despede de Coimbra e da sua amante, positivamente dá a entender o pensamento e resolução em que estava ao chegar a Lisboa de encetar a sua carreira militar.

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Na sua chegada á côrte encontrou o mais benevolo acolhimento; a primeira sociedade lhe abriu as portas, e o Poeta contou por amigos ou protectores, entre outros, o duque de Bragança e seu irmão D. Constantino, o duque de Aveiro, o marquez de Villa Real, o de Cascaes, o conde de Redondo e o da Sortelha, com quem parece que tinha relações de parentesco, D. Manuel de Portugal, a quem celebrou como o seu Mecenas, o joven D. Antonio de Noronha e outros muitos senhores; e é a esta epocha que o Poeta allude quando diz que se achava farto, querido, estimado e cheio de muitos favores, e mercês de amigos e de damas.

Aindaque não tivessemos a certeza, pela mesma bôca do Poeta, da · consideração e estima que houve logo na côrte por elle, uma carta em verso dirigida a Francisco de Sá de Miranda por seu cunhado Manuel Machado de Azevedo, que se lê na vida d'este escripta por seu bisneto o marquez de Montebello, nos declara o enthusiasmo que havia por elle nos circulos da boa sociedade, equiparando-o a João de Mena. A carta é a seguinte:

Respondendo á vossa digo
Amigo, senhor e hirmão,
Que entre tanta confusão
Não ha carta sem perigo.

Em que corra avesso tudo,
Tudo correrá direito
Se lhe sabe andar ao geito
O prudente e o sesudo.

Quando deem couce os planetas
Tem mais altos poderios
Aquele que o mar e os rios
Enfrea e pica os Poetas.

Fez o homem diferente

De qualquer outro animal,
Se elle do bem husa mal

E do mal bem' elle o sente.

Deu-lhe livre a eleição

Que outros chamão escolhimento;
Pos na mão do homem o tento
Do seu ganho ou perdição.

Vos quereis com discripcois

E com vossas letras grandes
Que em Italia, Espanha e Frandes
Vos reconheção as naçois.

Eu quisera que os Salloyos
Vos estimassem somente,
Por que da nossa semente
Sempre colhereis mais moyos.

Ha de desenfrear sua pena
Como hum potro desatado
Quem quizer ser mais medrado

Que Camoens e João de Mena.

Não encontrou provavelmente Camões a Så de Miranda, que é natural se tivesse ausentado da côrte para o seu retiro; Gil Vicente devia ser fallecido de proximo, porém é possivel que o Poeta, sendo menino, assistisse ainda a alguma das suas representações; Bernardim Ribeiro ainda era vivo, porém, mergulhado na mais profunda melancolia, chorava no seu romantico retiro da serra de Cintra a morte da infeliz Princeza, objecto dos seus amores; Camões não só o conheceu, mas cultivou a sua amizade, e porventura, mais de uma vez, os dois amantes infelizes trocaram entre si mutuas consolações. Assim como Sá de

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