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A ti Senhor a quem as sacras Musas
Nutrem e cibão de porção Divina,
Não as da fonte Delia Caballina
Que são Medeas, Circes e Medusas,

Mas aquellas em cujo peito infusas
As estão, que as leis da Graça ensinão,
Benignas no amor e na doutrina
E não soberbas cegas e confusas,

Este pequeno fruto produsido
Do meo saber e fraco entendimento
Huma vontade grande te offerece.

Se for de ti notado de atrevido
Daqui peço perdão do atrevimento
O qual esta vontade te offerece.

A elegia a que precede este soneto, um dos primeiros ensaios da musa juvenil do Poeta, se caracterisa, bem como o soneto XXI, por um lado por aquella vaidade de erudição, tão conhecida em um mancebo que sáe dos estudos; mas é ao mesmo tempo apreciavel por este mesmo defeito, para devidamente avaliarmos o progresso intellectual do Poeta. Por elle vemos o porfiado estudo que fazia dos auctores gregos e latinos, que por assim dizer lhe fervem na cabeça, como em um vaso o confuso tumulto e fermentação de particulas, que mais tarde hão de formar o mais suave e generoso licor. É invocado Apollo; as Musas Daphne, Doris, Panopêa, Thetis, Galathea dão tambem o seu contingente; o Pelio, Emmo, Ossa, Pindo e Atlante, são outra vez amontoados, não para escalar de novo o céu, mas para chorar a mais triste das scenas, passada em um pequeno monte, grande porém porque n'elle se arvorou o signal da nossa Redempção; os Thracios, a Grecia, Colchos, a Scythia, Sparta, os Phrygios incultos, são tambem incommodados; Ptolomeu e Strabo foram tirados da estante pulverulenta; e não houve coisa que esquecesse da antiga mythologia.

No meio comtudo d'esta abundancia extravagante e affectação escolastica, examine-se com cuidado este aliás diffuso poema, e n'elle encontraremos já os caracteristicos precursores de um grande Poeta. Note-se a tendencia que tinha de inventar vozes novas, e a felicidade na appro

priação dos epithetos; examine-se principalmente o final d'esta precoce tentativa poetica depois que o Poeta gastou todo o fogo da erudição, e ficou elle só, e encontraremos verdadeira poesia, pensamentos felizes e as mais bellas imagens. Quem póde recusar-se a admirar como rasgos de mestre, alguns pensamentos e imagens felicissimas: -O lyrio branco decomposto derrubado pelo ferro homicida - a branca rosa trespassada do frio- o cisne que na ribeira umbrosa enternece brando a selva circumstante com voz melodiosa — os anjos que como enxame de abelhas leves e ligeiros pressurosos trabalham por aligeirar os martyrios do Salvador? Mas o que é mais notavel, é a maneira com que termina, a exclamação de enthusiasmo por Homero e Virgilio, com quem em tão verdes annos já deseja hombrear:

Tomara ser Virgilio ou ser Homero
Somente no saber que foi divino,

Que ser o que elles forão não no quero.

Camões leu os dois poetas certamente divinos, e exclamou: -Eu tambem sou poeta-; e desde esse tempo traçou talvez as primeiras linhas d'aquelle Poema immortal que, mais tarde, o devia emparelhar com os dois eximios Epicos da Grecia e do Lacio.

A famosa expedição de Vasco da Gama 1, postoque conservada em memorias, algumas dos proprios navegadores, não tinha ainda entrado para o corpo das nossas chronicas, nem Castanheda, Osorio ou Barros tinham ainda publicado as suas historias ao tempo que o nosso Poeta frequentava a Universidade; comtudo parece, que já João de Barros propunha á mocidade o abandonar a brandura efeminada das poesias eroticas, apresentando-lhe, como programma, o resuscitar a poesia heroica para cantar os altos feitos dos portuguezes. No anno 1533 (tinha então Camões nove annos), no discurso panegyrico de D. João III, recitado perante o mesmo monarcha pelo historiador da India, fallando da poesia heroica, se expressa por esta maneira: «Com este fundamento ás mesas dos Principes e grandes Senhores se cantavão antigamente em metro os feitos notaveis dos grandes homens donde primeiro naceo a poesia heroica, e segundo eu tenho ouvido ainda neste tempo os Turcos em suas cantigas louvão os feitos d'armas e cavallarias de seos Capitaens, o que se fosse usado em Hespanha e toda a Europa, se me eu não en

1 Vide nota 20.a

gano mais proveito de tal musica naceria, do que nace de saudosas cantigas e trovas namoradas.» Aceitou poucos annos depois o convite o nosso joven Poeta; mas pôde João de Barros ver o seu desejo preenchido? Poucos mais dias de vida lhe eram sufficientes; ao mesmo tempo que chegava a Lisboa o Poeta, fallecia o historiador da Asia portugueza.

Se o primeiro pensamento dos Lusiadas não foi este convite, o que não pode absolutamente asseverar-se, não padece duvida comtudo que o Poeta foi principalmente influido pela leitura das Decadas da Asia, na narrativa do seu Poema (oxalá as não seguira tanto à risca!), bem como na urdidura poetica pela de Homero, e mais que tudo pela de Virgilio, pois não era do numero d'aquelles de quem escreve o nosso Garção, que só conhecem o portico de Athenas em caixas opticas pintado.

Mas se das linguas mortas tinha um cabal conhecimento, não cultivára com menos desvelo as vivas, isto é, a franceza, ingleza, castelhana e italiana, e mesmo a provençal, como affirma lord Strangford1, dizendo-se conhecedor, e as suas respectivas litteraturas. O grande numero de portuguezes graduados pela Universidade de Paris 2, e de francezes que já residia entre nós, e outros que concorreram depois a chamamento d'El-Rei D. João III, em cujo numero se contava Nicolau Grouchy, que verteu para francez a Castro do nosso Ferreira, devia tornar muito vulgar o conhecimento da lingua franceza em Portugal; e a analogia que se nota em certo trecho dos Lusiadas com um logar da Franciada 3 parece denotar que ao Poeta não foi desconhecido o poema de Ronsard.

A residencia tambem de alguns escocezes e inglezes entre nós; a grande reputação de Buchanan; o elogio ouvido talvez da bôca d'este, do seu poeta Chaucer, poderia talvez incitar o nosso Poeta ao desejo de ler na lingua propria o patriarcha dos poetas inglezes, para o conhecimento da qual tinha aberto as portas a celebre Paula Vicente, com a sua grammatica ingleza. A similhança de pensamento (se não foi um d'estes encontros do genio) de um logar das poesias do poeta inglez, com a ficção da ilha de Venus, faz de alguma maneira acreditar que ao Poeta não foi igualmente desconhecido o Poema inglez. Porém nem uma, nem outra d'estas linguas offerecia n'aquella epocha modelos tanto a seguir na poesia, como a castelhana, e mui especialmente a italiana.

1 Vide nota 21.a 2 Vide nota 22.a. 3 Vide nota 23.a 1 Vide nota 24."

Á estada de André Navagero na Hespanha, como embaixador á côrte de Carlos V, alem das relações e guerras da Italia, se deve a introducção do estylo italiano na poesia castelhana. O amigo de Pedro Bembo, durante a sua embaixada, tinha persuadido a Boscan, com quem contrahira amizade, a preferir a fórma poetica usada na sua patria, abandonando a antiga, conselho que foi facilmente aceitado pelo poeta castelhano, e seguido igualmente por Garcilasso. O infante D. Luiz tinha concorrido na expedição de Africa com este ultimo, e como poeta que era, não deixaria de trazer para a sua patria, e vulgarisar o Cancioneiro das suas poesias e de seu amigo Boscan, que o nosso Camões tinha em tanto apreço, que fazendo a comparação de uma senhora, diz que era mais branda que um soneto de Garcilasso, e em uma ode sua o emparelha com o seu predilecto Petrarcha.

Que as poesias de Garcilasso eram conhecidas em Portugal antes da sua morte se colhe com evidencia da egloga v, escripta por Sá de Miranda por occasião do seu fallecimento occorrido no anno de 1536, oito annos antes da impressão das suas rimas (1544), que se imprimiram posthumas. A exemplo dos dois poetas castelhanos, tratava Så de Miranda de introduzir na sua patria, depois da sua viagem de Italia, o gosto pela poesia do paiz que tinha percorrido, accommodando a phrase a novas combinações harmonicas, e sujeitando-a a novas ou desusadas leis metricas. O hendecasyllabo já conhecido em Portugal, mas pouco seguido, foi por elle definitivamente introduzido 1, desviando-se do uso commum e quasi exclusivo do verso octonario e redondilha maior, mostrando com regras praticas que elle devia fazer o principal fundamento da harmonia metrica na lingua portugueza, assim como trouxe para a nossa poesia o verso septenario ou heroico quebrado.

Tal foi o instrumento já muito melhorado, mas ainda imperfeito, que o Poeta encontrou no seu tempo, que elle montou de novas e variadas cordas, e levou à perfeição para d'elle tirar sons inspirados da mais arrebatada e melodiosa harmonia poetica. Uma das provas porém do fino tacto litterario e superioridade do nosso Poeta, é que devendo necessariamente achar-se a republica das letras dividida em differentes fracções, de petrarchistas ou italianos, nacionaes ou trovistas, latinos e classicos, elle não se alistou exclusivamente em nenhum dos campos, antes applicou a metrificação conforme lhe pareceu conveniente ao assumpto que tratava. Classico, especialmente na urdidura do seu Poema,

1 Vide nota 25.

tendo sempre em vista a Homero e Virgilio, elle não desprezou comtudo a feliz imitação dos poetas modernos; cultor e apreciador da lingua do Lacio, diremos antes latino com excesso na phrase, julgou porém antes transportar para a lingua poetica vocabulos d'aquelle idioma, mas vasados em fórma portugueza, do que, seguindo o exemplo de ingratidão de alguns compatriotas, usar de linguagem estranha; admirador do Dante, Ariosto, Bernardo Tasso, Pedro Bembo, e mais do que todos de Petrarcha, não seguiu com tanto servilismo a nova fórma metrica italiana de pouco introduzida (apesar de a seguir quasi sempre) que abandonasse inteiramente a antiga redondilha nacional, na qual não só compoz (e já no outono da vida) uma das suas mais gabadas poesias 1, mas todas as suas peças dramaticas, em uma das quaes (os Amphitriões) foi em parte classico e imitador dos latinos, como vamos expor.

Jorge Buchanan, que leccionou em Coimbra poucos annos depois da saída do nosso Poeta d'aquella Universidade, nos dá noticia do costume escolastico que existia nas academias de seu tempo, de se comporem peças dramaticas expressamente em latim para exercitar e desembaraçar os estudantes n'aquella lingua; e faz menção na sua auto-biographia das differentes peças que compoz para serem representadas nas academias onde leu cursos. A comedia de Plauto os Amphitriões, já traduzida em castelhano (1505), e accommodada á representação por Villalobos, reputado por um dos campeões da escola dos classicos, tinha tido e gosava de grande voga no reino visinho. Desejoso o Poeta de brilhar em uma peça que agradava, e adherindo a este uso academico, mas com espirito reaccionario, me persuado que compoz durante o seu curso a sua imitação dos Amphytriões de Plauto, mas na lingua materna, resolução, ou antes revolução, em que teve por companheiro a Ferreira. O estylo classico da peça, a escolha do assumpto tratado por differentes, e entre estes, mais tarde, pelo grande Molière, me faz inteiramente acreditar que esta sua composição foi expressamente feita para ser representada perante uma assembléa de litteratos. Se isto é assim, ella foi contemporanea, se não antecedeu aos Estrangeiros de Francisco de Sá de Miranda; não usou elle comtudo sacudir o jugo do verso, e n'isto pôde mais para com elle o exemplo de Gil Vicente, do que o do Seneca portuguez.

Taes me parece que foram as primeiras tendencias litterarias do nosso Poeta, e algumas outras poesias à sua amante no principio dos seus

1 Vide nota 26.a

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