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Longe pois de deixar seu filho orphão, como erradamente se tem dito, se achava Simão Vaz de Camões, postoque de setenta annos de idade, pelo menos, ainda com bastante vigor de saude para exercer um cargo, para o qual era necessario actividade, e promettendo ainda annos de vida; e assim poderia talvez assistir á publicação dos Lusiadas de seu filho, pois sete annos antes ainda era vivo.

Como nas obras de Cicero, debalde nas do nosso Poeta procuramos noticias ou referencias á casa paterna, ou porque se perderam aquellas onde poderiamos beber estas noticias, ou porque a sua musa recuasse timida perante a austeridade dos paes, que julgam sempre o exercicio da poesia passatempo ocioso que afasta os filhos da vida real e activa, procurando quasi sempre cortar as azas ao estro poetico que os faz divagar por uma região esteril e sem fructo. A primeira e ultima vez que Simão Vaz apparece conjuntamente com o filho é no anno de 1550, servindo-lhe de fiador para o embarque para a India: nada mais sabemos das mutuas relações do pae e do filho, só podemos asseverar que se a educação é o mais caro e certo penhor de amizade, o mais rico legado com que um pae póde dotar a seu filho, foi sem duvida Simão Vaz de Camões pae o mais amante, pois não lh'a podia dar mais esmerada.

IV

As relações que Simão Vaz de Camões tinha com os padres de S. Domingos, que n'aquelle tempo gosavam de bastante reputação litteraria; a proximidade da casa com o convento; a docilidade com que o Poeta, a seu rogo, emendou e riscou alguns logares do seu Poema; o recreio que mostrava, e a consolação que sentia com a companhia d'estes religiosos, nos ultimos e desgraçados tempos da sua vida, arrastando-se, ́encostado a umas muletas, para ouvir as lições de theologia que se davam n'este convento, me faz acreditar que fossem estes religiosos os primeiros preceptores do nosso Poeta, frequentando elle as suas aulas, que n'aquelle tempo eram concorridas pelas principaes pessoas da côrte.

Na Universidade de Lisboa devia o Poeta continuar os seus estudos, onde ainda alcançou o lente Garcia de Orta, que n'aquella Universidade leu philosophia no anno de 1533, e no de 1534 se despediu da Universidade para acompanhar para a India Martim Affonso de Sousa. Dizemos isto como uma conjectura, porém mui approximada da verdade, poisque na ode VIII, endereçada ao Vice-Rei D. Francisco Cou

tinho, Conde de Redondo, para o tornar propicio para conceder licença para o privilegio e impressão do livro que aquelle Doutor queria imprimir sobre as drogas do Oriente, está evidentemente sobresaindo o reconhecimento e amizade do discipulo para com o mestre, como elle diz, carregado de annos: o exemplo que aponta para convencer o Conde é a gratidão de Achilles para com o mestre, podendo talvez inferir-se pela provecta idade do auctor do livro e pelo final d'esta poesia, que tivesse Garcia d'Orta sido mestre do Conde, e depois ainda do Poeta.

Não temos noticias positivas e circumstanciadas do tirocinio litterario do nosso Poeta, porém das suas poesias se deprehende já em idade tão tenra aquella rara penetração, que quasi sempre é a percursora do genio; o soneto XXI, talvez o primeiro adejo poetico do nosso Vate, no qual, alem de boa poesia, se revela o seu aproveitamento na historia universal, é prova convincente. Quantas vezes o leitor terá passado com indifferença este soneto que nos mostra a epocha tão prematura das precoces composições do Poeta, dando-nos uma prova de que de onze annos, ou menos, já poetava e fazia um soneto como aquelle ! É este soneto dirigido ao Duque de Bragança D. Theodosio, e n'elle lhe chama grão successor e novo herdeiro do Braganção estado; ora o Duque D. Jaime, seu pae, falleceu a 20 de Setembro de 1532, em consequencia, n'este anno herdou seu filho D. Theodosio a sua casa e estado. Admittindo que o Poeta escreveu este soneto tres annos depois, praso mais lato que se pode dar, porque aliás caberia mal o titulo de novo herdeiro, temos o soneto escripto aos onze annos da vida do Poeta ou antes; provavelmente o foi no anno de 1535, no qual intentou acompanhar o Infante D. Luiz á expedição da Goleta, ou quando o Duque D. Theodosio veiu hospedar-se em Coimbra no convento de Santa Cruz, onde os conegos regrantes lhe fizeram sumptuosa hospedagem, e onde o Poeta se deveria achar, pois por esta epocha residia na cidade de Coimbra.

A Universidade de Coimbra, fundada primeiro em Lisboa por El-Rei D. Diniz, a instancias do abbade de Alcobaça, prior de Santa Cruz e outros reitores de igrejas parochiaes, e mais pessoas, tanto ecclesiasticas como seculares, que se offereceram a pagar aos lentes pelas suas rendas, depois de varias mudanças de uma para outra cidade, acabava emfim definitivamente de se trasladar para Coimbra no anno de 1537, apesar da opposição dos seus lentes, por determinação de El-Rei D. João III, desprezando-se a lembrança de a remover para Torres Vedras, contra o que representavam a Camara e povos d'esta villa.

N'esta Academia, que então começava a brilhar com o ensino de illustres mestres nacionaes e estrangeiros, foi o Poeta concluir os estudos encetados em Lisboa, como temos a certeza pela canção Iv e outras suas poesias das quaes consta a sua residencia n'esta cidade:

Vão as serenas agoas

Do Mondego descendo,

E mansamente ate o mar não param:

Nesta florida terra

Leda, fresca e serena

Ledo, e contente, para mi vivia;

Não sei, nem consta das suas poesias, qual era a carreira litteraria a que se destinava, e a vida que preferia escolher, porém inclino-me a acreditar, que foram os primeiros estudos os de theologia, não só pela distracção que tomava no fim da vida com estas materias, mas porque correndo a sua educação debaixo dos auspicios de um tio seu, Superior de uma ordem religiosa, poderia bem acontecer que descortinando este no sobrinho talento tão prodigioso, occorresse a idéa de o attrahir para a sua corporação. A perplexidade que o Poeta mostrava na escolha de uma vida, apparece em um paragrapho inedito de uma das suas cartas impressas, e se encontra em um manuscripto que possuo onde esta carta vem por integra. «Tomei o pulso a todos os estados da vida e nenhum achei em perfeita saude, porque a dos clerigos para remedio a vejo tomar maes da vida que salvação da alma; a dos frades inda que por baxo dos abitos tem huns pontinhos que quem tudo deixa por Deos nada avia de querer do mundo (sic); a dos casados é boa de tomar e roim de sustentar e peor de deixar; a dos solteiros barca de vidro sem leme que he bem roim navegação: hora temperai me lá esta gaita, que nem asi, nem asi, acharas meo real de descanso nesta vida, etc.» Em o mesmo manuscripto segue outra carta que pelo estylo parece do nosso Poeta, onde se encontram estas expressões: «Novas minhas estava por não escrever por que não ousava confessar que temia deixar hum estado por outro que maes me emfadasse; pois nesta parte me vencião dous receios, a huma largar a com que tanto ha me enguanei, outro de não saber o como me averia no que não tinha provado, mas aqui entrou a razão dizendo me que do que tinha me baş

tava o desengano, e para o que buscava me servisse o conselho no qual estou resoluto de hir este anno a Coimbra restituirme aos ares em que me criei parte do tempo que perdido tenho, entretanto que eu mais de perto não posso corar estas oppinioens com que ás duvidas respondo se lembre V. M. que he obrigado a honrallas como minhas e defendellas como suas.»>

Seria longo para aqui, e por certo tarefa mui superior ás nossas forças, o descrever o movimento litterario da Academia portugueza, no tempo em que foi cursada pelo nosso Poeta: parece que penna mui douta1, pela analyse do seu Poema, se encarregou já de demonstrar os variados conhecimentos em os differentes ramos das sciencias que n'ella devia ter bebido, quem concebeu e poz por obra um poema tão maravilhoso; e de certo, se não tivesse outro padrão de gloria, bastava o ter creado tão distincto alumno, e nós não podemos dar do seu esplendor mais valioso testemunho que o do proprio Poeta:

Quanto pode de Athenas desejar-se
Tudo o soberbo Apollo aqui reserva,
Aqui as capellas dá tecidas d'ouro

Do Bacaro e do sempre verde louro.

Sem entrar comtudo no exame do movimento scientifico e no systema litterario que regia a Universidade n'aquelle periodo da sua existencia, para se mostrar qual era o profundo estudo que se fazia das linguas mortas, tocaremos em um estylo que achâmos consignado nos estatutos do collegio de Santa Cruz (1536) onde vem descriptos os exames dos que se graduavam nas differentes faculdades, isto é, que pelos ditos estatutos era não só prohibido, mas tinha-se como opprobrio a qualquer escolar communicar-se n'outra lingua que não fosse a grega ou latina, pelo menos dentro da Universidade. Fazemos menção d'este costume academico, porque estamos persuadidos de que concorreu não pouco para o solido conhecimento das sciencias, para as quaes estas duas linguas eram a chave, e para o aperfeiçoamento da lingua poetica, que o Poeta formou e enriqueceu de novos vocabulos e elegantes locuções, e fixou de todo. Em uma descripção contemporanea (1550) do mosteiro de Santa Cruz, se faz menção não só d'este uso, mas de outros costumes escolasticos; e porque descreve com cores assás vivas

1 Vide nota 18."

a vida academica d'aquella epocha, nos parece de algum interesse extractar a parte em que allude aos ditos usos. «Sobre este terreiro (diz a descripção) em altura de quatro degrãos está hum tavoleiro ladrilhado de pedras quadradas, e cercado de grades de ferro, sobre o qual estão fundadas as bazes do soberbo portal de magestade, torres e igreja d'este mosteiro. Em este tavoleiro ha grande concurso de estudantes que continuamente conferem entre si, huns em gramatica, outros em rethorica, outros em logica e philosophia, outros em santa theologia, outros em medicina da vida e saude humana reparadora; e a todos he oprobrio fallar, salvo em a lingoa latina ou grega. Estes estudantes sahem como enxame de abelhas de dous polidos e concertados collegios, o primeiro se diz de Santo Agostinho, e o segundo de S. João Baptista, são as aulas ou geraes em elles ladrilhados e forrados e providos de cathedras mui arteficiosas.» Cheio de todo o viço e florescencia da mocidade, de toda a superioridade do talento, se nos figura estar vendo o nosso Poeta no meio d'este enxame de estudantes discutindo, e admirando a todos os seus condiscipulos e mestres pela vastidão de seus profundos conhecimentos.

Nenhum pastor cantando me vencia,
A barba então nas faces me apontava;
Na luta, na carreira em qualquer manha
Sempre a palma entre todos alcançava,

exclama elle em uma das suas composições, aprazendo-se no gabo de si mesmo, e com toda a consciencia do proprio merecimento.

No primeiro Capitulo, que se celebrou em Santa Cruz a 3 de Maio de 1537, saíu eleito primeiro geral d'aquella congregação D. Bento de Camões1, tio do Poeta e irmão de seu pae, e por carta passada a 15 de Dezembro do mesmo anno, primeiro cancelario da Universidade, cargo o mais principal d'aquella Academia. Debaixo dos auspicios, tutella e discrição de tão proximo parente, cursou o Poeta os seus estudos, de sorte que durante esse tempo, nem lhe faltou direcção na sua carreira litteraria, nem protecção valiosa. Foi por esta occasião que escreveu, segundo elle diz, á sombra de um freixo de um valle ameno a sua elegia (inedita) a Sexta feira Maior, a qual pelo soneto dedicatorio que a acompanha se conhece ser dedicada ao tio e mentor:

1 Vide nota 19.a

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