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antes da sua entrada no Ministerio, preparava uma nitida edição dos Lusiadas (1802), D. Rodrigo de Sousa Coutinho; e outro, o Conde da Barca, Antonio de Araujo de Azevedo Coutinho (1805), pegava na penna para escrever uma apologia do Poeta; porque não somente se encontrariam ainda os mesmos officiaes que tinham trabalhado nas obras da reedificação do Mosteiro, que só teve logar depois do anno de 1778, mediando assim pouco mais de vinte annos, existindo tambem ainda religiosas antigas, mas porque, pela sua posição como Ministros, tudo que se intentasse em honra do Poeta, seria efficazmente auxiliado pela vontade d'estes; ainda no tempo em que o Morgado de Matheus D. José Maria de Sousa Botelho fez a sua primorosa edição, e o Sr. Bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, escreveu a biographia de Camões, era tempo idoneo para se vir a um resultado seguro de qualquer trabalho que sobre este fim se intentasse.

XXVIII

O vaticinio que o Poeta fazia de si com aquelle presentimento que o genio sempre concebe de uma fama posthuma, não tardou em verificar-se; quasi todas as nações, como bem prophetisa o epitaphio latino, o quizeram chamar seu, passando as bellezas, do seu Poema immortal para as suas respectivas linguas e para as suas litteraturas. Na hebraica, grega, latina, castelhana, franceza, ingleza, italiana, allemã, hollandeza, polaca, sueca, dinamarqueza e russa nos consta que tem sido trasladado, repetindo-se as traducções, o que prova em quanto apreço têem o seu Poema. E se estas nações não sentissem diariamente e a cada momento os effeitos das nossas descobertas e conquistas, com as quaes as trouxemos ao trato e commercio de paizes que não conheciam, e alargámos a escala dos conhecimentos e commodidades da vida, a epopéa portugueza seria sufficiente para entre elles divulgar tão gigantescos feitos.

Fosse porém permittido ao Poeta sobreviver a esta ovação posthuma e universal que o aguardava, e estou persuadido de que, pondo de parte toda a vaidade justificada do homem de genio, se daria por bem pago de ser elle o instrumento, pelo qual eram espalhados por todo o universo os altos feitos da sua nação, e de ser o pregoeiro do seu ninho

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paterno. Esta pequena consolação devia ser a unica que adoçasse a amargura dos ultimos dias da vida, e esta pôde ainda ter sabendo que na nação visinha se preparavam duas traducções, que ambas saíram no mesmo anno em que falleceu, e que provavelmente na Italia se trabalhava na mesma empreza, e porventura mesmo levada a fama da celebridade do seu Poema a Roma por Jacome Marmita, poeta italiano que residia em Lisboa em vida do Poeta, ou o Cardeal Alexandrino que deu a sua entrada publica em Lisboa no mesmo anno em que estava a saír o seu Poema do prelo, e a quem o Poeta forçosamente seria apresentado pela pessoa encarregada de acompanhar o Cardeal, o seu protector D. Constantino de Bragança, lembrasse ao Prelado ou a outra pessoa de igual categoria, que se preenchesse aquelle logar que na coroação de Petrarcha, com espirito fatidico, deixou vago junto ás Musas na pintura do Parnaso, com que se ornou a sala do Capitolio, o astrologo Barbante Senense para um poeta que havia de nascer nas regiões occidentaes; nem isto é tão temeraria e atrevida conjectura, se a partes mais afastadas do trato portuguez tinha chegado a fama do seu nome a ponto que se diz que de Allemanha um fidalgo d'aquella nação escrevia a um correspondente seu em Lisboa, para que lhe indagasse que sepultura tinha o Poeta, e quando a não tivesse sumptuosa, impetrasse licença para trasladar os seus ossos com toda a veneração, e lhe faria no seu paiz um soberbissimo mausoleu; e se affirma mais que a republica de Veneza offerecia pelos mesmos a quantia de vinte e quatro mil cruzados 2.

Os estrangeiros mais distinctos pelo seu saber, alguns ainda em vida do Poeta, lhe tributaram os mais exaltados elogios; entre estes distinguiremos Herrera que nos seus commentarios a Garcilasso3 lhe chama divino, e lhe dirige uma das suas poesias; Miguel Cervantes que chamou ao seu Poema dos Lusiadas tesoro del Luso, e Lope da Vega, grande admirador do Poeta e que à sua memoria dedicou uma das suas comedias. Mas sobre todos estes elogios, aquelle que mais o devia lisonjear era o de outro poeta, como elle infeliz, e como elle astro radioso que brilhava na sua patria, na terra classica das letras, com resplandecente fulgor; fallo no grande Torquato Tasso, que dizia que só ao nosso Poeta receiava, e o imitou em mais de um logar da sua Jerusalem Liberatta, fazendo alem d'isto publico o seu enthusiasmo em um soneto que lhe

1 Vide nota 86.a

2 Vide nota 87.a

3 Vide nota 88."

dirigiu. Alem d'essa poesia, o Poeta e o Poema dos Lusiadas era objecto de uma correspondencia que o Tasso entretinha com o Conde de Villa Mediana D. João de Tarsis 1, e ao mesmo poeta seu rival, como lhe chamava, se dirigia com estas encarecidas e affectuosas expressões de eterna gloria para o elogiado e para a nação cujos altos feitos cantou.

«N'este seculo, assim se expressava o poeta italiano, não tenho senão um rival que me possa disputar a' palma. Ah! diz-me, és tão desgraçado como eu, cantor virtuoso do mais alto feito que os da tua nação commetteram? Por cá tem soado que és infeliz: oh! mal aventurado... mas ai! tu não o és tanto como eu. Poderá acontecer que o imperio das Indias saia das mãos dos successores de Manuel, e que a soberba Lisboa não veja mais chegar ao seu porto os thesouros da Africa e da Asia; mas a primeira gloria das suas immensas conquistas viverá sempre resplandecente no Poema de Camões; as nações mais remotas admirarão nos Lusiadas o valor incrivel de um punhado de homens, que, affrontando perigos terriveis, enormes e nunca vistos, e domando populosas nações, levaram ás extremidades do Universo as suas virtudes e a religião de seus paes.»>

O cantor da Jerusalem não se enganou, esse immenso poder saíunos das mãos; mas o Poema immortal viverá sempre como epitaphio de tanta gloria!

XXIX

Se a gloria e credito litterario do nosso Poeta se dilatava tão longe dos limites da sua patria, não lhe faltaram comtudo n'ella criticos maldizentes que, offuscados por tanto brilho, procurassem deslustra-lo com ridiculas invectivas; mas isto não admira: Virgilio e Horacio não fallam em Cicero, e se a minha memoria me não falha, nem Boileau de La Fontaine. Tanto é verdade que a corôa destinada ao genio é tambem entrelaçada com pungentes espinhos da inveja! É, foi e será sempre a sorte dos homens grandes. Homero teve o seu Zoilo; depois de tantos centos de annos decorridos renovou o ataque o Abbade Bois Robert; seguiuse-lhe Desmaret de S. Sorlin e depois d'este o Abbade Charles Perault; · levantou-se porém o Principe de Conti em defeza do Epico grego, e disse que iria um dia á Academia franceza, notando o silencio de Boileau, escrever no seu logar: «Tu-dormes Bruto. » Acordou o satyrico

1 Vide nota 89."

francez, e a questão terminou com riso á custa do antagonista Perault. Veiu novamente a campo Houdart de la Mothe; vieram tambem mais dois Abbades, o de Terrason, e o de Pons, e a disputa se tornou mais interessante, porque o sexo feminino quiz tomar parte na peleja alliando-se a Marqueza de Lambert do lado dos antagonistas e a celebre M.me Dacier, pondo-se à frente dos apologistas. O theatro tomou assumpto da questão, e fez rir a platéa á custa dos combatentes 1; mas no fim de tudo Homero ficou sempre sendo o mesmo Homero. Virgilio, apesar das liberalidades de Augusto e da sua boa fortuna, lá teve um Carbalio Pictor que deveu à sua censura a alcunha de Eneadomastix, e outros muitos que o accusavam de plagiario da Illiada.

E quereis saber como a Academia de Crusca, por bôca do seu secretario Rossi, ajuizava da Jerusalem Libertada do infeliz Torquato Tasso 2? Na opinião do critico era elle o poeta mais infimo que tinha apparecido até o seu tempo; o seu poema a obra mais inferior que tinha saído á luz; fazia-se ler pela novidade, mas em poucos dias caíria no esquecimento para nunca mais se levantar. Era um poema secco sem proporção, sem invenção, enfadonho e desagradavel; o estylo pouco florido, acanhado, frio e obscuro; as comparações baixas, pedantescas, os versos asperos e de uma cadencia pululante. Tal era o juizo critico que os academicos faziam do mais bello Poema de um dos maiores poetas da Italia! Estes escreviam resentidos, mas o que mais admira é Boileau, o Dictador da litteratura franceza no seculo de Luis XIV, fazer um tão errado conceito do poeta italiano. Ao injusto juizo dos Academicos juntemos ainda a critica de um homem tão celebre como foi Galiléo, e o que é mais um decreto do Parlamento de París (1595) que prohibia a publicação da sua Jerusalem Conquistada, como attentatoria dos direitos reaes e da memoria do fallecido rei Henrique III, e que o Procurador geral com alguma ignorancia confundiu com a Jerusalem Libertada.

Milton pôde apenas secretamente saborear a fama que o aguardava, porquanto o seu Poema, esteve por muito tempo occulto, e pouco ou nada prezado dos seus compatriotas, até que um estrangeiro de um reino visinho lhes veiu denunciar que tinham o mais bello dos poemas epicos. Não faltaram criticos e inimigos ao poeta do Tamisa 3, e entre estes o mais acerrimo o seu compatriota Guilherme Lauder, que sustentou que as comparações, descripções, discursos e ornatos do seu

1 Vide nota 90.a

2 Vide nota 91." 3 Vide nota 92."

poema não eram mais que plagiatos extrahidos de differentes poetas; que Milton apenas tinha tido o trabalho de copiar, e traduzir, apropriando-se até dos defeitos dos originaes. O poema do Jesuita Mansenius, a Sarcothea, a tragedia de Grotius, o Exilio de Adam e o poema a Guerra dos Anjos, do professor Saxonio Taubman foram indicados pelo critico inglez como a origem d'onde Milton tirou os differentes membros da sua composição. Juntae ainda outros, Ramsay, Vida, Sannazar, Romæus, Fletcher, Straforst, Adreini, Quintianus, Malapert e Fox; e a estes, diz Mr. de Chateaubriand, poderão tambem acrescentar Santo Avito e Tasso, de quem é provavel que o poeta inglez lesse em Napoles, em companhia do Manso, o seu poema « Sette giornate del mondo creato.»

. Corneille, o pae do theatro francez 1, o precursor de Racine e Molière, não pôde evitar a critica injusta quando saía a sua bella producção dramatica do Cid, a recompensa foi uma critica da Academia, pondo-se á testa do antagonismo o ferrenho Cardeal de Richelieu; o terno e suave Racine teve o seu Pradon. Mas que é feito dos criticos? passaram como a nuvem perante o sol, e as obras immortaes do genio, depois de tantos seculos devolvidos, são ainda hoje e o serão sempre lidas e relidas pelo homem de bom gosto.

Se o nosso Poeta aconselhava a Duarte Pacheco que se consolasse da ingratidão dos Reis com Belisario, elle podia tambem, pondo os olhos na injustiça praticada com homens tão superiores que o haviam precedido e outros que se lhe haviam de seguir, aprender a desprezar as censuras absurdas feitas a tão solido merecimento. Nem podemos nós absolver aquella parte de seus contemporaneos que em seu peito abrigaram tão baixo sentimento, que ou detractores invejosos procuraram com uma critica erronea diminuir-lhe o merecimento, ou julgaram com o seu silencio fazer emmudecer-lhe a reputação, como se o seu Poema não fallasse de uma maneira tão altisonante, ou fosse necessario passaporte d'elles para entrar no Templo da Deusa das cem bôcas. É na verdade notavel que quasi nenhum dos poetas do seu tempo, d'aquelles que canonisâmos como classicos, lhe endereçasse elogio, ou mesmo d'elle faça menção quando tão liberalmente os prodigalisavam uns aos outros. Nem Sá de Miranda, nem Ferreira, nem Caminha, nem Bernardes se referem ao Poeta nas suas poesias 2; d'este ultimo me parece mesmo,

1 Vide nota 93.a

2. Vide nota 94.a

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