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tura o Cantor immortal da gloria dos portuguezes. Exhalasse porém o ultimo suspiro em uma casa de caridade, ou na pobrissima pousada onde residia, o certo é que lhe faltava no fim da vida tudo quanto para ella era necessario, e em tanto apuro de miseria vivia que escrevendo-lhe Ruy Dias da Camara 1 para que lhe traduzisse os Psalmos Penitenciaes que lhe havia encommendado, lhe deu a resposta que já mencionamos n'esta biographia, em que lhe expunha o desalento e quebramento de espirito, a que o reduziam tão graves e dolorosas angustias. Morto em tanta miseria, levaram o seu cadaver á igreja das freiras Franciscanas da invocação de Sant'Anna, que então servia de freguezia, e estava proximo da sua casa, e ahi foi dado á sepultura pobre e plebeiamente, diz Pedro de Mariz, logo ao entrar da porta principal ao lado esquerdo. Não nos devemos admirar da frieza com que o trataram então os seus compatriotas, se nos lembrarmos que morreu em uma epocha em que todas as lagrimas eram poucas para chorar as desgraças da patria; não obstante, apenas o tempo deu o allivio possivel, ou para melhor dizer a resignação necessaria para o soffrimento da calamidade publica, dezeseis annos depois o trasladou para outra mais honrada sepultura D. Gonçalo Coutinho 2, cavalheiro illustre da Casa de Marialva e grande amigo do Poeta, e sobre a sua campa lhe mandou gravar este singelo, mas expressivo epitaphio:

É

AQUI JAZ LUIS DE CAMÕES
PRINCIPE

DOS POETAS DO SEO TEMPO.

MORREO NO ANNO DE 1579.

ESTA CAMPA LHE MANDOU POER D. GONÇALO COUTINHO

NA QUAL SE NÃO ENTERRARÁ NINGUEM.

=

para advertir que Pedro de Mariz e Faria e Sousa, e seguindo-os outros muitos, acrescentaram á inscripção as palavras =viveu pobre e miseravelmente que ali se não encontravam, pois a inscripção, tal qual a apresentamos, foi trasladada da propria sepultura do Poeta pelo Chronista da Ordem, que por esta occasião rebate 3 o editor das obras do Poeta publicadas no anno de 1772, que novamente repete este mesmo erro; admira-me como Faria e Sousa, que escreveu com tanta in

1 Vide nota 80.a 2 Vide nota 81." 3 Vide nota 82.a

vestigação sobre o Poeta, se não deu ao trabalho de visitar a sepultura, n'aquelle tempo ainda não vedada ao publico, para nos dar mais minuciosas informações relativas ao local onde repousam as cinzas do Poeta. Mais abaixo da primeira inscripção, com licença de D. Gonçalo Coutinho, lhe mandou pôr outra mais diffusa e hyperbolica, escripta em versos latinos, Martim Gonçalves da Camara, Escrivão da Puridade d'ElRei D. Sebastião e seu valido, aquelle mesmo que dizem que em vida do Poeta lhe fôra adverso; foi esta composta pelo padre Matheus Cardoso, da Companhia de Jesus, e dizia assim:

Naso Elegis, Flaccus lyricis, Epigramate Marcus,
Hic jacet Heroso Carmine Virgilius.
Ense simul, calamoque auxit tibi, Lysia famam :
Unam nobilitant Mars et Apollo manum.
Castalium fontem traxit modulamine: at Indo,
Et Gangi telis obstupefecit aquas.

India mirata est, quando aurea carmina lucrum
Ingenii haud gazas, ex Oriente tulit.

Sic bene de patria meruit dum fulminat ense:
At plus dum calamo bellica facta refert.
Hunc Itali, Galli, Hispani, vertere Poëtam:
Quælibet hunc vellet terra vocare suum.
Vertere fas, æquare nefas, æquabilis uni

Est sibi, par nemo, nemo secundus erit.

O Chronista franciscano já citado faz menção de outra memoria que ali mandou collocar o contemporaneo do Poeta, Miguel Leitão de Andradę, o auctor das Miscellaneas, a qual ainda se conservava quando o Chronista escrevia, porém não a descreve. Em um manuscripto do anno de 1638 encontramos a sua descripção, isto é, no livro de Diogo de Mouro de Sousa1. Consistia em uma tarja de azulejo com uma cruz no meio, collocada na parede junto à sepultura, e no pé da dita cruz esta inscripção:

1 Vide nota 83.

O grão Camões aqui jaz
Em pouca terra enterrado,
Nas terras tão nomeado,
De espada tão efficaz
Quanto na penna afamado.

E nas illargas do proprio pé da cruz, estes dois epitaphios por esta

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e de cada lado da cruz ficava uma figura, uma d'ellas com um ramo verde em uma mão, e a outra sustentava um livro com um tinteiro e penna. Os dois epitaphios que estavam sobre a sua sepultura se achavam em partes gastos, no seculo passado, como testifica um escriptor d'aquella epocha que descreve este mosteiro.

Muitos outros epitaphios, tanto na lingua latina como em outras linguas, foram escriptos em louvor do Poeta por differentes enthusiastas, sem o pensamento comtudo de serem postos na sepultura.

A acquisição da perpetuidade da sepultura obtida por compra aos padroeiros da igreja, que eram os sapateiros da Padaria, feita por D. Gonçalo Coutinho, os testemunhos de veneração ali collocados por elle e pelos outros dois fidalgos, e que n'aquelle local se conservavam ainda pelo terramoto de 1755, a mesma clausura em que ficavam os despojos mortaes do Poeta confiados ás virgens do Senhor, sempre cuidadosas na boa administração interna dos templos confiados à sua guarda, davam logar a esperar que estes pequenos padrões do reconhecimento nacional se conservassem intactos; porém desgraçadamente não aconteceu assim, e antes estivessem expostos ao publico, pois teriam sem duvida mais facilmente despertado a idéa de lhe levantar condigna sepultura, conservando-se incolumes tão preciosos restos mortaes. As religiosas porém, mais occupadas das cousas celestes do que das terrenas, apagaram todos os vestigios apparentes por obras a que procederam no côro inferior onde estes se achavam. Para sobradar o côro, as lages foram arrancadas, porém felizmente não mexeram nas covas, como depois se reconheceu; e os azulejos que estavam na parede foram igualmente arrancados, e esta coberta com retabulos de altares que acompanham as paredes de um lado e outro do côro.

Por zelosa proposta de um dos nossos mais celebres poetas, o Sr. Antonio Feliciano de Castilho, feita perante a sociedade que se installou em Lisboa no anno de 1835 com a denominação dos Amigos das letras, se resolveu a exploração da sepultura do Poeta. Nomeou-se uma commissão, e obtida a competente licença por parte de S. Em.a o Sr. Patriarcha e a do Governo, a Commissão começou as suas explorações

no dia 7 de Setembro de 1836; porém apenas encetados os seus trabalhos, o rufo do tambor chamou os exploradores, uns a serem actores, outros expectadores de uma d'estas tristes lutas fratricidas, que vae em mais de trinta annos ensanguentam o solo portuguez.

Preparava-me eu pessoalmente a visitar este local, para denunciar ao publico o fructo das minhas observações, á vista das indagações externas a que havia procedido, e S. Em. o Sr. Cardeal Patriarcha D. Guilherme Henriques, movido pelo amor das letras patrias, se dignava prestar-se a conceder-me a precisa auctorisação para poder concorrer ao logar determinado, quando o Governo nomeou uma nova Commissão para este fim, de que tive a honra de fazer parte, começando a Commissão desde logo os seus trabalhos, e encarregando especialmente d'aquelles que diziam respeito á arte o seu intelligente collega o Sr. João Maria Feijó, Capitão de Engenheiros e Lente de architectura civil, e curso de construcção na Escola do Exercito. Os archivos que foi conveniente examinar, o foram cuidadosamente, prestando-os aquelles a quem estavam confiados com a maior franqueza ao exame da Commissão. Foram percorridos os documentos do archivo do proprio Mosteiro, onde se suppoz que se poderiam encontrar alguns esclarecimentos que conviessem, auxiliando não só n'este trabalho, mas em tudo o mais que estava ao seu alcance o fallecido confessor das senhoras Religiosas o padre F. Redondo, sacerdote zeloso das letras patrias. Ao senhor Prior da freguezia de Nossa Senhora da Pena, o padre Antonio Francisco Franco, deveu muito a Commissão pela franqueza com que poz á sua disposição o Cartorio d'aquella freguezia; e se o seu obituario, que seria interessantissimo se abrangesse mais nove annos, não deu esclarecimentos importantes, o antigo livro de Visita da freguezia muito serviu para se poder reconstruir mentalmente a antiga Igreja, sem o que talvez se não viessem a resolyer duvidas que com este auxilio foram desfeitas.

Nem é menos louvavel a facilidade com que os artistas da classe de sapateiros da Confraria de S. Chrispim facilitaram os fragmentos do seu archivo, que aliás deveria ser muito interessante se se conservasse, porquanto sabemos pelo Livro antigo da Visita da freguezia da Pena, que o Prelado obrigava os confrades como padroeiros da Casa a terem em ordem o Livro dos Covaes, onde deveria estar assentada a transacção feita com D. Gonçalo Coutinho sobre a sepultura: é aqui talvez occasião de consignar, em abono do apreço que esta Confraria fazia do nosso Poeta, o facto de ornarem os seus confrades, alguns mesmo coe

vos d'elle, o arco triumphal, com que por ordem superior festejavam e recebiam um Rei intruso, com os versos do nosso Auctor.

Se a Commissão não pôde juntar e extremar á parte a ossada do nosso Poeta, ella pôde comtudo, pela certeza do local onde repousavam os seus ossos, e de n'elle se não haver mexido, recolher os seus ossos embora reunidos com os de outros compatriotas, preferindo este modo leal de proceder, a alguma fraude, embora no melhor sentido. O Poeta não se queixaria da companhia, estava entre os seus queridos portuguezes; mais uma advertencia, para os fieis que visitarem a sua sepultura se lembrarem que, conjuntamente, ahi estão irmãos que pedem os suffragios da Igreja pela sua alma; e se uma sepultura vazia aguarda em Florença os ossos do Dante, esta, por cheia de mais, não desperta menos respeito pelos despojos preciosos que, conjuntamente com o de outros cidadãos, ali se encerram.

Do resultado dos trabalhos da Commissão, o publico será sufficientemente informado pelo bem elaborado e logico relatorio, redigido pelo erudito Secretario e collega da mesma Commissão o Ex.mo Sr. José Tavares de Macedo.

Fallando da sepultura do Poeta, direi duas palavras sobre uma opinião que voga desde o seculo XVII, que a sua sepultura era uma campa que está ao meio da grade do côro, ficando parte do lado de dentro da Igreja; quem asseverou isto foi Faria e Sousa, que vemos que não visitou esta sepultura, pois traz o epitaphio errado: porém a sua opinião não pode sustentar-se à vista do testemunho de Diogo de Mouro de Sousa, que escrevia pelo mesmo tempo de Faria e Sousa, e o qual trasladou os epitaphios no proprio local, e os dá junto à porta principal á mão esquerda, e mais especialmente o do Chronista franciscano fr. Fernando da Soledade, que escrevia cerca do meado do seculo passado, e em consequencia mui posterior á asserção de Faria e Sousa, dizendo que no anno em que escrevia, de 1739, n'aquelle mesmo local se encontravam as inscripções.

Muito menos póde ter logar a anecdota do Inglez, narrada pelo padre José Agostinho de Macedo, e referida por José Maria da Costa e Silva1; porque quem se transferir aquella Igreja verá que não existe tal altar, nem ha por isso a probabilidade de ser espreitado.

Sentimos que estas explorações sobre a sepultura do Poeta não tivessem sido feitas anteriormente, quando dois Ministros d'Estado, um

1 Vide nota 84.a

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