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XXIV

Foi Luiz de Camões, diz Manuel Severim de Faria, de mediana estatura, cheio de rosto, algum tanto carregado de fronte, nariz comprido, levantado no meio e grosso na ponta; cabello loiro quasi açafroado, gentil e engraçado na apparencia quando era moço e antes de perder o olho direito. O mais antigo retrato, ou o primeiro, que possuimos do nosso auctor, é o que foi publicado no anno de 1624 no elogio que The fez Manuel Severim, e havia sido mandado gravar por seu sobrinho Gaspar Severim de Faria dois annos antes. N'esta gravura subscripta por A. Paulus, é representado o Poeta em meio corpo e em vestuario militar, pousando uma mão sobre os Lusiadas, e com a outra pegando na penna, e no alto do quadro se vêem as armas da familia, lendo-se embaixo esta subscripção:

MUSIS ET POSTERITATI S.

LUDOVICO DE CAMÕES, EQUITI LUSITANO,

POETÆ CELEBERRIMO, MUSARUM DELITIIS GRATIARUM ALUMNO,
HUMANARUM LITTERARUM ENCYCLOPEDICO,

NECNON ARMATÆ PALADIS EGREGIO SECTATORI.

IN QUO FELICISSIMUM INGENIUM ET ADVERSA FORTUNA DECERTARUNT. GASPAR SEVERIM DE FARIA VERAM EFFIGIEM ENEA TABULA INCISAM, UT QUI ORBEM JAM FAMA OCCUPAVIT PRESENTIA EXORNAT.

D. D. Q.

Manuel de Faria e Sousa juntou tambem ao commentario dos seus Lusiadas um retrato representando um busto, e na base as armas, e o emblema das palmas e da espada, que julgo foi escolhido por João Franco Barreto. Nos commentarios autographos aos Lusiadas do mesmo Faria e Sousa, que se conservam na real bibliotheca das Necessidades, vimos um retrato em uma portada que serve de frontespicio ao livro, feito por mão de Faria e Sousa -es hecho de mano de Faria e Sousa e com a declaração de ter sido tirado aos quarenta annos do Poeta; o mesmo commentador.preparava em Roma uma estatua para ser depositada junto à sua sepultura, porém não pôde traze-la concluida.

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Com melhor buril e pouca differença no vestuario se vê outro retrato seu na Apologia com que saíu João Soares de Brito, no anno de 1644. O retrato está em uma elliptica que se encaixa em um parallelogrammo, e junto aos angulos superiores d'este parallelogrammo, pela parte interna se vêem duas figuras embocando cada uma a sua trombeta, e nos angulos inferiores de cada lado uma espada pendente, e em torno da elliptica esta inscripção:

MANSURA PER OEVUM FATORUM COMITIS.

Na traducção castelhana de Tapia de 1580, na folha do titulo, parece estar o Poeta representado em uma vinheta com a lança em punho, e na acção de querer montar a cavallo.

O seu retrato vemos alem d'isto que ornava as salas e bibliothecas dos curiosos, e a um d'estes encontrámos uns versos em castelhano em um cancioneiro do seculo XVII, que suppomos feitos por D. João de Almeida:

Soi quien los hechos del felice Gama
Engrandeci con tan divino canto,
Que en el soberbio templo de la fama,
Los dos quedamos por eterno espanto,
Alcançando entre aquelles que la rama
Del lauro cinen mi alta pluma tanto,
Que de quanto el mundo estima e nombra
Yo solo soy la luz, y ellos la sombra.

Na edição das obras de Camões, por Manuel Lopes Ferreira (1720), apparece um novo retrato em corpo inteiro, que me parece tirado de algum retrato antigo, e vê-se o Poeta representado na acção de compor, sentado junto a uma banca em uma sala, cujas paredes estão ornadas com dois quadros de batalhas. Conheço tambem um pequeno busto executado em madeira, com olhos azues, cabello ruivo, que serviu de gastão a uma bengala muito antiga que tinha em volta um anel de prata, onde se lia o anno do nascimento e fallecimento do Poeta. Eu tenho tambem um retrato a oleo que me parece antigo, que apresenta certa expressão de melancholia no rosto e alguma differença dos outros retratos. Possuia um em ponto pequeno a sua amante D. Catharina de Athaide, que costumava trazer no seio, o que deu logar ao Poeta, vendo o seu transumpto collocado em sitio tão privilegiado, e logar de tanta gloria,

romper n'estes lindos versos, em que manifesta o desejo de dar sentidos e vida áquella copia; versos que, postoque correm nas suas poesias, por desconhecidos, principalmente dos estrangeiros, peço licença ao leitor para aqui os trasladar:

Retrato, vós não sois meu
Retrataram-vos mui mal,
Que a sereis meu natural
Foreis mofino como eu.

GLOSA

Inda que em vós a arte vença
O que o natural tem dado,
Não fostes bem retratado,

Que ha em vós mais differença
Que no vivo do pintado:

Se o lugar se considera

Do alto estado que vos deu
A sorte, que eu mais quisera,
Se he que eu sou quem d'antes era,
Retrato, vós não sois meu.

Vós na minha gloria posto,
Eu na vossa sepultura,

Vós com bens, eu com desgosto
Pareceis-vos ao meu rosto,

E não já á minha ventura.
E pois n'ella e vós erraram
O que em mim he principal,
Muito em ambos se enganaram:
Se por mim vos retrataram
Retrataram-vos mui mal.

Mas se esse rosto fingido
Quisereis representar,
Ouvera por bom partido
Dar-lhe a alma do sentido
Para a gloria do logar.

Vireis posta nessa altura

Que em vós não ha cousa igual,

Que nem a maior mal

Podeis vir, nem mor baixeza
Que serdes meu natural.

Porisso não confesseis

Serdes meu, que he desatino
Com que o lugar perdereis: ·
Se conservar-vos quereis,
Blasonai que sois divino.
Que se nesta occasião
Conhecessem que ereis meu
Por meu vos derão de mão

Foreis mofino como eu.'

XXV

Era o Poeta no trato agradavel, alegre e engraçado, como attestam algumas de suas poesias escriptas a damas e amigos; mas esta alegria começou a perder na India, nos ultimos tempos que ali militou, entregando-se á melancholia, sentimento que se apoderou de todo d'elle na sua volta para o reino. Dos seus habitos pouco podemos dizer, nem tratariamos de certas miudezas que só interessam quando dizem respeito aos grandes homens, se não contassemos como predecessores n'estas minuciosas narrativas homens os mais abalisados. Suetonio nos diz que Cesar era molestado dos callos, e Horacio nos diz de si que soffria dos olhos, e seu amigo Virgilio do estomago; o Manso e Chateaubriand não omittiram cousas da mesma natureza nas suas biographias, o primeiro do Tasso, e o segundo de Milton.

Não podemos dizer se, como o Tasso, o Poeta trajava sempre de negro, ou como Milton de panno grosso e alvadio, antes pelo contrario nos parece que na sua mocidade fora cuidadoso no seu vestuario; o Poeta galanteador das damas, como todos os que por ahi passaram, sabia que apreço aos olhos d'ellas tem um vestuario elegante e fastuoso. Nas suas poesias se encontra um pequeno poema, em que recorda a um fidalgo de uma maneira graciosa e delicada a promessa que lhe

havia feito de uma camiza; objecto do vestuario do homem, n'aquelle tempo, do mais subido valor, como nos attesta Manuel de Faria e Sousa em uma nota (inedita) commentando a esparça, na qual o Poeta se refere á falta da promessa d'aquelle fidalgo. Sabemos porém que elle usava de um chapéu de abas grandes, o que deu logar a um epigramma (inedito) seu, ao ouvir uma senhora que estava a uma janella, chamar outra para ver o homem das abas grandes, que começa:

Quem por abas me quer conhecer, etc.

e que eu não termino por ser d'aquelles poucos do nosso Poeta, que peccam algum tanto contra a decencia.

Se Milton ceiava seis azeitonas, e lhe bebia em cima um copo de agua, as refeições do nosso Poeta eram de uma natureza mais substancial. A ceia dada na India aos fidalgos que vieram com D. Constantino de Bragança nos deixa ver quanto elle se deleitava n'estas agradaveis reuniões de amigos, em que a amizade se espraia, e a alegria vem tirar uma can que alveja na cabeça ainda quente, mas que vae em breve cobrir-se com o gelo da velhice. Entre amigos soldados e homens espi・・rituosos, bem educados e cavalheiros, não podiam deixar de ser estes ajuntamentos os mais deleitosos; sem participarem da orgia que nauseia ou do cerimonial que abafa a alegria, eram comtudo mais livres, temperados porém pela cortezia e boa educação dos fidalgos mais illustres que os compunham, do que essas ceias semi-cerimoniaticas do nosso Sá de Miranda, e que elle nos descreve na sua carta ш:

Ó ceas do parayso

Que nunca o tempo vos vença
Sem falla trocada ou riso,

Nem carregadas do siso,

Nem danadas da licença:

e assim devia ser; a tenda do soldado, a vida do homem de armas of- ⚫ ferece outras liberdades que não se toleram ao magisterio ou á toga do magistrado.

Por alguns epigrammas engraçadissimos nos consta que o Poeta era excessivamente goloso de gallinhas; mais de alguma vez alguns fidalgos com quem tinha amizade, para despertarem a sua musa jocosa lhe faziam promessa, em troco de versos, de algumas aves d'esta especie,

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