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saiu a enforcar; porém a pedido de D. Antonio lhe perdoou El-Rei a culpa.

N'este anno se avivaram as desavenças da Rainha D. Catharina com seu neto El-Rei D. Sebastião, mostrando esta a resolução de se ir para Castella apoiada por seu sobrinho Filippe II; e um dos motivos que dava era a recusa do casamento, por parte d'El-Rei, e a influencia que os jesuitas, apoiados pelo Cardeal D. Henrique, exerciam sobre o Monarcha. Attribuia-se a estes a politica de conservarem El-Rei no celibato, para assim se conservarem mais na influencia; porém esta imputação pode ser modificada á vista das instrucções dadas pelos ministros do Rei ao seu embaixador em França, nas quaes se presta ao casamento, sendo o dote d'El-Rei de França ajudar com tropas a liga de que o Principe desejava ser o capitão, e cessarem as piratarias que se faziam ás possessões portuguezas, fazendo-se as competentes demarcações nas nossas colonias; mas este casamento não teve effeito, por casar a Princeza com Henrique IV. Podia tambem influir para a frieza e recusa que o Rei mostrava um facto que os historiadores não contam, isto é, uma inclinação que parecia domina-lo por uma dama do Paço, chegando ao ponto, alguns que o cercavam, de o aconselharem de se ligar a ella pelos laços do matrimonio. Cerrou-se o anno com espantosos frios, que caíram na derradeira semana de Dezembro, cobrindo-se tudo de gelo e coalhando-se o Tejo em Alcochete, ao longo da terra. Tal foi o anno do apparecimento dos Lusiadas!

O anno que se seguiu de 1573 não raiou mais risonho; no primeiro de Março começou a chover tão grossa quantidade de agua, com fortes tormentas, que produziu grandes cheias; e no primeiro de Abril foi esta tão grande, que chegou o mar a cobrir toda a rua da Misericordia até ao Ver o Peso, por onde nadavam grandes barcas, e durou este estado tempestuoso até 12 de Maio, que choveu consecutivamente. N'este mesmo anno falleceu a Rainha mãe, de quem se esperava que, junto com a Rainha D. Catharina, desviasse El-Rei de seus projectos de perdição.

No anno de 1574 houve no reino uma grande esterilidade, principalmente nas provincias do Minho e Traz os Montes. N'este mesmo anno partiu El-Rei, pela primeira vez, para a Africa, tendo de antemão mandado o Sr. D. Antonio, prior do Crato, e filho do Infante D. Luiz, que levou mil e duzentos homens e quatrocentos de cavallo, tendo El-Rei

1 Vide nota 67.a

assistido em Belem å benção das bandeiras, prégando o Bispo D. Antonio Pinheiro, e animando na sua prégação os soldados.

Saíu El-Rei, com grande sobresalto e susto de todos que conheciam quão grande perigo corria a sua vida e a segurança da monarchia; desde esse momento começaram as preces publicas e supplicas em todos os mosteiros, pela boa sorte do Rei e tranquillidade do seu povo, saíndo procissões de penitencia, e entre estas foi a mais solemne a da Misericordia, em que prégou o nosso escriptor Diogo de Paiva.

Se nos annos antecedentes as aguas tinham trazido graves calamidades ao reino, veiu n'este de 1575 outro elemento, o fogo, causar na cidade uma grandissima perda: a 18 de Fevereiro se ateiou o fogo á uma hora depois do meio dia, na rua dos Algibebes, a que chamavam tambem rua do Principe, e ardeu toda a banda do mar, que caía sobre as louceiras, deitando-se as mulheres e meninos pelas janellas, que aparavam em baixo, em colchões e outras cousas, e não foi a mais o fogo por ser a taes horas e pela diligencia com que se lhe acudiu.

Logo em Março começaram a apparecer doenças graves, de sangue e mortes repentinas, que os medicos attribuiram á muita gente que havia affluido da Beira a esta cidade, por causa da fome e esterilidade que ali reinava, que enchiam e entulhavam as ruas, macilentos e esfomeados, como espectros ambulantes. Acudiu El-Rei a esta miseria, mandando-os recolher ao hospital, onde lhes dava salario para seu sustento; mas não podendo este estabelecimento receber nem a decima parte, os distribuiu pelas casas dos mercadores ricos, que os tratavam com muita caridade, distinguindo-se n'esta occasião o coração magnanimo da Infanta D. Maria, que mandou, no caes da madeira, construir um hospital provisorio onde eram recebidos e agasalhados.

A 7 de Junho tremeu a terra com grande abalo, levantando a uns do chão, e a outros das cadeiras, deixando a todos atemorisados.

Pelo S. João d'este mesmo anno deu treguas a estas tristezas um sumptuoso divertimento de touros Reaes e foram estas talvez as ultimas alegrias de Portugal, e com que a cidade queria attrahir a si o seu Rei, que se esquivava, e preferia as brenhas dos matos ás delicias da côrte. Armou-se para este effeito, defronte dos paços de Xabregas, um grande terreiro em que trabalhavam, por dia, trezentos homens, cercado de palanques riquissimos de tres sobrados, não só da Rainha D. Catharina e Infanta D. Maria, mas da Casa da India, Tribunaes e mais Senhores da côrte que affluiram com ricos vestuarios, e cavallos sumptuosamente ajaezados. El-Rei jogou cannas primeiro de uma parte, e

da outra o Senhor D. Antonio, com outros tantos fidalgos, e depois de corridas começaram os touros, não querendo El-Rei que ninguem mais os picasse senão elle, o Senhor D. Antonio e o Duque de Aveiro, sendo os touros mui bravos, e correndo-se mui galantes sortes, que eram applaudidas pelos instrumentos que tinham trazido, em obsequio d'ElRei, as pessoas que estavam nos palanques. Assistia a esta festa a Rainha D. Catharina e a Infanta D. Maria com as suas damas, que incitavam com a sua presença os cavalleiros que tomaram parte no divertimento real. Mas para o nosso Poeta, quão triste era a sua situação no meio de todas estas alegrias; n'aquelle palanque real, ornado de tão bellas damas, faltava a sua amante, a sua D. Catharina de Athaide; faltava uma estrella n'aquelle firmamento!

No ultimo quartel do anno, aos 3 de Outubro, começou novamente a chover dia e noite, até o fim do mez, verificando-se o ditado que nadando vem a fome a Portugal, e houve grandes perdas, não só na cidade, mas em todo o reino, alagando-se o Rocio todo e a rua Nova, e foi a causa entupirem-se os cannos e arrebentarem; logo em Dezembro houve nova cheia ainda maior, e vinham pelo rio abaixo muitos bois, bestas e outros animaes e pessoas mortas. No anno de 1576 saíu El-Rei em direcção a Sagres nas galės, com grande acompanhamento de fidalgos, com a armada toda embandeirada, indo primeiro dar vista d'ella a sua avó a Rainha D. Catharina, que se achava nos Paços de Xabregas; e tendo entrado de volta no Tejo, com as galės armadas, e muitas alegrias e tangeres, participando-lhe a Rainha com muita pressa como era fallecida a Infanta D. Izabel, mandou amainar tudo, e se recolheu a Belem. Não tardou muito, pois não medearam dois mezes, que o Infante D. Duarte, filho d'esta Princeza, Duque de Guimarães e Condestavel do Reino, fosse acompanhar a sua mãe na sepultura, e com a morte d'este Principe desabou o ultimo esteio à successão varonil d'estes reinos, deixando os direitos de successão de sua irmã, a Duqueza de Bragança D. Catharina, entregues á feminil fraqueza de uma senhora pouco apta para lutar com as insidiosas tramas e sillogismos de aço do astucioso Filippe II.

N'este mesmo anno teve principal incremento a nossa desventura, vindo Mulei-Hamet pedir soccorro contra a usurpação de seu tio; aceitou El-Rei gostoso a proposta, e com este pretexto se começou a apparelhar para a expedição d'Africa. Tendo mandado a seu tio Filippe II por embaixador Pedro de Alcaçova Carneiro, logo depois da sua chegada houve a entrevista de Guadalupe, a qual não correspondeu a tão

intimo parentesco, que mais se esperava estreitar n'esta visita real. Durante a sua estada em Castella teve logar, dia de Santa Luzia, o horrivel fogo das tercenas de Santos, onde estava recolhida a polvora e grande quantidade de trigos; foi tal a força da explosão, que a cidade se abalou, e arruinaram-se casas, arrojando pedras e alastrando-se o largo de Alcantara com o trigo que ali estava recolhido.

Em Março de 1577 falleceu a Infanta D. Maria, Princeza muito illustrada, protectora das sciencias, e muito estimada dos portuguezes. Aos 10 de Novembro d'este mesmo anno appareceu um cometa, que excitou em todos grande susto e apprehensões, pretendendo ver n'este signal do céu, que durou pouco mais de um mez, um prognostico da perda d'El-Rei e da ruina do reino; por este tempo mandou o Papa a El-Rei um vaticinio feito, conforme assevera o auctor d'onde transcrevo esta memoria, que o teve na sua mão, pelo mais celebre astrologo do seu tempo Hercules Bellemene de Revore, em que, ponto por ponto, estava escripta a sua perdição, morte e captiveiro dos que o acompanhavam, e nada d'isto bastou para desviar El-Rei do seu intento.

Chegou emfim o fatal anno de 1578, e El-Rei a activar os aprestos da armada. Os emprestimos, quasi forçados, multiplicavam-se, mercadejando concessões e isenções com os christãos novos, a troco de dinheiro que davam, e não havendo respeito aos cofres dos orphãos, defuntos e ausentes, e do resgate dos captivos, que de todo o reino se recolheram á cidade, que tudo era pouco para as despezas de uma tão lusida armada.

Por este tempo falleceu a Rainha D. Catharina, que do seu leito de morte clamava: Não passe El-Rei á Africa. Mas nada pôde embargar a decidida vontade do arrojado mancebo, cuja sorte estava já escripta no livro da Providencia. Aos 14 de Junho benzeu na Sé o Arcebispo, em pontifical, a bandeira real, em que, como prognostico de victorias, ia pela primeira vez a coroa cerrada de Imperador sobre as quinas, bandeira que, no combate, já perdidas as esperanças, D. Sebastião tanto desejou que lhe servisse de mortalha! Sairam da cathedral na mesma ordem em que tinham ido, até o paço da Ribeira, onde El-Rei não entrou, e se foi logo metter na galé, tratando d'ali de apressar a partida, e aos 25 de Junho saiu pela barra fóra com novecentas quarenta e tantas vélas, e vinte e quatro mil homens, em que entravam seis at sete mil estrangeiros. Surgiu o agourado dia 4 de Agosto, e n'elle perdemos, com um Principe extremamente cavalleiro, a nossa independencia, e um futuro glorioso que, sem duvida, estava reservado a Por

tugal, quando a madureza dos annos tivesse temperado as demazias de cavalheirismo guerreiro de um Principe que havia tomado por divisa: Un bel morir tute la vita honora. Ocioso seria gastar palavras em descrever esta horrivel catastrophe, de que ainda hoje sentimos os effeitos, mas muito mais os sentiam aquelles que, entre clamores e lagrimas, choravam os parentes e apparelhavam os pulsos para a escravidão do estrangeiro.

XXII

Não nos demoraremos tambem muito em expor por miudo o quebrantamento geral que se apoderou da nação, quando Diogo Lopes de Siqueira entrou o Tejo com as reliquias de tão infausta batalha, porque os escriptores do tempo trasladam, com as mais tristes cores, o sentimento da desgraça que lhe repassava o coração, e de que foram victimas, e os poetas nas mais dolorosas endechas. Acclamou-se o Cardeal entre choros, gemidos e prantos, e a sua acclamação foi mais o espectaculo de um saimento funebre, do que das festivas alegrias, com que os portuguezes costumavam acompanhar os seus Reis n'estes solemnes autos. Quando Portugal precisava mais de um braço robusto para o defender, subia ao throno um velho caduco, de tanta debilidade que para a harmónisar com o alimento, e conservar essa pouca vida que The restava, se amamentava aos peitos de uma mulher. A energia moral estava, como era de esperar, como a physica; o egoismo, fructa maligna da idade provecta, tinha penetrado as entranhas do velho Soberano. Indeciso, timido, perseguindo D. Antonio, sem dar comtudo apoio ao legitimo herdeiro, accusado como parcial de Filippe II, deixou por decidir a grave questão da successão com a sua morte, que teve logar pouco mais de um anno depois, e no mesmo dia em que contava sessenta e oito de idade. Esvaiu-se a vida do velho Rei, como uma alampada que ardia em longa noite de inverno; apagando-se em sombria tristeza, pela morte do filho, toda a gloria portugueza, que havia attingido ao seu zenith na vida do pae. O seu corpo foi dado á terra psalmeado com as imprecações do povo, e com o epigramma com que elle, desde os tempos mais remotos, desafoga os seus odios e antipathias1. A providencia, que ás vezes costuma manifestar-se em phenomenos os mais extraordinarios, pareceu ainda apresentar-se por

1 Vide nota 68.a

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