Imagens da página
PDF
ePub

O Qualificador do Santo Officio, o padre Fr. Bartholomeu Ferreira, no seu parecer para a impressão dos Lusiadas', que precede a primeira edição (1572), diz que n'elles não achou cousa alguma escandalosa, nem contraria á fé e bons costumes, sómente lhe pareceu que era necessario advertir os leitores, que o auctor, para encarecer a difficuldade da navegação e entrada dos portuguezes na India, usa de uma ficção de deuses dos gentios. Permitte que a dita fabula dos deuses vá na obra, salva a verdade da Santa fé, que todos os deuses dos gentios são demonios; e termina com um elogio ao auctor e á obra. -E por isso me pareceu o livro digno de se imprimir, e o auctor mostra n'elle muito engenho e muita erudição nas sciencias humanas.- Eu tive occasião de cotejar um manuscripto contemporaneo do I canto dos Lusiadas, e não encontrei cousa que indicasse uma mutilação. Longe pois de se fazer a mais pequena alteração aos Lusiadas, houve para com este thesouro nacional todo o respeito e excepção como será facil convencer o leitor. Pela Regra vir do Indice expurgatorio prohibem-se todos os livros que contam ou ensinam cousas deshonestas, mas os antigos que são escriptos pelos gentios, permittem-se pela elegancia e propriedade da lingua, mas por nenhum modo se leiam aos moços. E não estaria o Canto Ix dos Lusiadas, e mais alguns logares do poema, no caso de parecerem a algum escrupuloso que deveriam ser cortados, ao mesmo tempo que a Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, as obras de Jorge de Montemayor, e a Eufrosina e o Ulissipo de Jorge Ferreira eram defezos? Quem não vê que o censor, aqui n'esta excepção, emparelhou o nosso Poeta com os primeiros classicos latinos, cuja leitura, apesar de lasciva e deshonesta, se permitte pela propriedade da lingua? E note-se que ao mesmo tempo que se apresenta esta judiciosa tolerancia com o nosso Poeta, o Ariosto não é poupado. Nos Avisos e lembranças assignados pelo mesmo censor dos Lusiadas, o padre Fr. Bartholomeu Ferreira, para a reformação dos livros, que acompanha o Indice expurgatorio de 1581, se encontra esta advertencia a respeito do poeta italiano.

«Do Orlando furioso se hão de riscar algumas cousas que tem escandalosas e desonestas, como se pode ver no Canto setimo, e decimo quarto e vigessimo. >>

Quem póde negar, com imparcialidade, que os Lusiadas do nosso Poeta não estavam nas mesmas circumstancias do Orlando de Ariosto, para soffrerem córtes severos em alguns logares, principalmente execu

1 Documento E.

tados por velhos a quem o gelo da velhice tinha esfriado o fogo da mocidade? Comtudo é muito para suppor, ou para melhor dizer, certo, pois o affirma o seu commentador e amigo, que o Poeta, previamente á publicação do seu poema, aceitou muito espontaneamente os conselhos de alguns frades de S. Domingos de Lisboa 1, com quem tinha amizade estreita e convivia; se isto não fosse assim como se explica a continuação d'esta amizade, sendo a sua companhia a unica cousa que lhe distrahia a melancholia que o minava em os ultimos dias da sua existencia? Com toda a rasão não existiria no coração do Poeta um justo resentimento, contra aquelle que deturpava o trabalho de tantas vigilias, feito na peregrinação do exilio, conscio que era a obra que devia immortalisar o seu nome, e o que era ainda mais para o Poeta, o da sua querida patria? Dizei-me, se uma mão brutal ousasse passar a broxa sobre a ascensão de Rafael, ou despedisse o camartello contra a obra prima de Canova, não desejariam aquelles dois genios da pintura e esculptura decepar aquella mão impia e sacrilega? Mas para bem comprehendermos como isto se passou, é preciso saber que o padre Fr. Bartholomeu Ferreira era não só o censor ex officio, mas o Aristarcho e amigo dos poetas seus contemporaneos, a quem sujeitavam as suas obras não só para a approvação, mas para soffrerem a lima imparcial de uma critica conscienciosa como tive occasião de ver nas poesias autographas de Pedro de Andrade Caminha. Os logares onde o Poeta se conformou com as suas advertencias me parecem claros no poema: a chaga chronica do coração do Poeta era a injusta perseguição que experimentou pelos seus amores, de modo que em casos analogos, tende sempre para desculpar aquelles que se entregaram, ainda que desordenadamente, a esta paixão. Assim não poupa o mesmo Affonso de Albuquerque, pela morte que mandou dar ao soldado Rui Dias por o encontrar com uma escrava que trazia para a Rainha; e depois de haver culpado El-Rei D. Fernando pelos seus amores com a Rainha D. Leonor roubada a seu marido, termina com estes versos:

1 Vide nota 62."

2 Vide nota 63.

Desculpado por certo está Fernando
Para quem tem de amor experiencia,
Mas antes tendo livre a phantesia
Por muito mais culpado o julgaria.

Emquanto a mim estes dois ultimos versos foram ali postos para attenuar as asserções do Poeta, por conselho do censor. Parece que o censor lhe pediu igualmente que explicasse por alguma fórma a allegoria. do poema, o que elle, condescendendo com a vontade d'aquelle religioso, faz n'esta estancia (LXXXII do Canto x.)

Aqui só verdadeiros gloriosos

Divos estão; porque eu Saturno, e Jano,
Jupiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal, e cego engano:
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e se mais o trato humano
Nos póde dar, he só que o nome nosso
Nestas estrellas poz o engenho vosso.

Pediu-se mais ao Poeta, que désse a verdadeira significação do vocabulo Fado, o que igualmente faz na estancia xxxvIII do Canto x:

As gentes vãas que não os entenderam,
Chamaram-lhe fado mau, fortuna escura,
Sendo só providencia de Deus pura.

E parece-me tão exacta esta minha asserção, que estas duas estancias são adduzidas pelo censor da edição de 1597 (uma‍das amputadas) para se desculpar de não ter borrado alguns vocabulos de que o auctor muitas vezes usa, e que já alguns lhe notaram, como é fallar em deuses e em fado. Se nos transportarmos ao tempo em o qual o Poeta escreveu o seu poema, não nos admiraremos tanto que se apresentassem certos escrupulos no meio de novidades e subtilezas theologicas que ensanguentavam a Europa; e alguem houve tão excessivo a este respeito, que intentou fazer mudar a technologia astronomica1, convertendo para nomes de santos os dos planetas e estrellas, para o que compoz uns versos latinos, para mais facilmente se confiarem á memoria, e se fabricou um planispherio celeste no mesmo sentido. Alem d'isto os poetas catholicos faziam espontaneamente as suas declarações e protestações de fé; já antes do nosso Poeta, o Dante a havia feito n'es

tes versos:

1 Vide nota 64.a

Cosi parlar convensi a vostro engegno
A vostra facultade, e piede et mano,
Atribuirce a Dio, et altro intende

E Santa Chieza con aspetto humano
Gabriel e Michael vi representa.

O Tasso, não só explicou a allegoria do seu poema em um discurso preliminar, mas tratando do mesmo vocabulo, fado, se expressa ao mesmo modo do nosso Poeta:

Demonio li chiama angelica favella,

Ma il pazzo mondo lui fortuna apella.

Parece-me pois sufficientemente provado que o poema dos Lusiadas saíu em vida do auctor como elle o concebêra, e sómente depois da sua morte se tentou fazer-lhe algumas alterações; mas note-se que estas se tentaram subrepticiamente, dizendo-se até que a edição onde se faziam algumas ridiculas amputações e emendas1, ía conforme a primeira (1572). Já não podemos dizer o mesmo das suas poesias lyricas, que temos toda a certeza que soffreram córtes; da comedia de Filodemo se cortaram, entre outras cousas, umas redondilhas, e na egloga vii, intitulada dos Faunos, temos a lamentar a falta das estancias em que descrevia Diana no banho.

É pois pouco exacta e infundada a asserção, ao menos pelo lado honorifico, do pouco apreço que da pessoa de Luiz de Camões fizeram seus contemporaneos: elles o coroaram com o titulo de Principe dos Poetas, e affirma mais Faria e Sousa, que quando elle apparecia na rua, todos paravam até que desapparecia. Na côrte não foi menos estimado. No soneto LXIV da centuria 1, feito ao grande D. Luiz de Athaide, por occasião dos festejos e distincções que El-Rei D. Sebastião lhe fez à sua volta de Goa, no qual encarece como objecto de maior fama o vencer no reino amigo as ingratidões e inveja, do que no Oriente os reis inimigos; e no soneto LIX, recitado sobre as cinzas d'El-Rei D. João III, por occasião da sua trasladação para Belem, successos que ambos tiveram logar n'aquelle mesmo anno, temos prova de que elle acompanhava a côrte, onde era bem aceito.

Logoque saiu o seu poema, ou talvez antes, isto é, a 28 de Julho

1 Vide nota 65.a

de 1572, o galardoava o joven Rei com a pensão de 15,5000 réis1 pelos seus serviços militares, e pelo engenho, sufficiencia e habilidade que mostrou no livro das cousas da India; e parece que tão grande era a estimação que se fazia do Poeta, que a pensão é dada com a clausula de residencia na côrte. Taxam os biographos do Poeta de pouco generosa esta mercê do Soberano, e Manuel de Faria e Sousa affirma que costumava elle dizer, que pediria a El-Rei que mandasse dar mil e quinhentos açoutes, a quem tão mal a pagava. Este escriptor, aliás estimavel, quando apaixonado é tão propenso a exagerar, que assim como com elle não acreditamos que Francisco Rodrigues Lobo fosse plagiario, Bernardes um versificador pouco limado, e Francisco de Sá de Miranda um engenho trivial, nos não achâmos dispostos a acredita-lo n'esta occasião, quando das apostillas da tença se collige o contrario.

XIX

Mesquinho foi sem duvida o premio, para quem tão grande brado deu aos illustres feitos da gente portugueza; porém se attendermos á pouca idade do Rei, e que só de guerras a cabeça trazia preoccupada, de algum modo desculparemos um mancebo, que não soube agraciar mais generosamente um engenho tão singular, e não nos admiraremos tanto que o alaúde poetico fosse mal ouvido entre o estrepitoso som dos instrumentos de guerra.

Não busquemos pois na injustiça dos homens a origem da pouca fortuna do Poeta, mas sim, forçoso é dize-lo, porque elle proprio o confessa, em alguns erros, e em circumstancias accidentaes que tão poderosamente attenuaram no fim da sua vida a gloria portugueza. Se é verdade, como temos visto, que elle deveu os seus primeiros infortunios a uns amores do Paço; se nos lembrarmos das barreiras que o decoro tinha posto ás galantarias d'aquellas portas a dentro; poderemos alvez imputar a falta de protecção que encontrou junto da pessoa de um Soberano, que aos proprios estrangeiros attrahiu com mercês, a esse passo não criminoso, antes filho de um coração sensivel e da verdura dos annos. Se teve perseguições, durante o tempo que esteve na India, de um Miguel Rodrigues Coutinho, e dos dois Barretos, encontrou protecção em um D. Constantino de Bragança, em um Conde de Redondo,

1 Documentos F, Gė I.

« AnteriorContinuar »