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tria de Camões: a naturalidade ou procedencia da mãe a de Santarem. Faria e Sousa presume ser natural de Lisboa, fundando-se em serem seus paes moradores d'esta cidade, no dialecto proprio da côrte de que usa, e em chamar repetidas vezes ao Tejo patrio. Outros o fizeram natural de Coimbra, fundando-se na residencia de seu pae n'aquella cidade d'onde era oriundo João Vaz de Camões seu bisavô. Domingos Fernandes, na dedicatoria das rimas á Universidade de Coimbra, que publicou no anno de 1607, o assevera. As rasões que se apresentavam dos dois lados poriam a balança em perfeito equilibrio, se Manuel Correia tão positivamente não declarasse ser nascido em Lisboa. O auctor d'este livro diz elle no principio dos seus commentarios — é Luiz de Camões, portuguez de nação, nascido e creado na cidade de Lisboa, de paes nobres e conhecidos. E note-se que Pedro de Mariz, que foi o editor d'estes commentarios e era natural de Coimbra, não emendou o commentador, reivindicando esta honra para a sua patria. Assim podemos dizer, que era oriundo de Coimbra pelos ascendentes, mas nascido na cidade de Lisboa, á qual cabe não menos gloria que a Mantua, por ter dado nascimento ao Virgilio portuguez.

III

Que Luiz de Camões fosse filho de um plebeu ou de um nobre pouco importava para a sua fama, porque ella é toda sua, e de tão alto preço que não precisa valer-se do merecimento alheio: a reputação e gloria de Cicero, Virgilio e Horacio (se é verdade que o primeiro não diminuia o lustre do nascimento para adular o povo romano) chegaram até nós; e apesar do seu obscuro nascimento, os seus nomes brilham entre os mais famosos da antiga Roma. Reputamos em muito a nobreza do merecimento, e por certo o homem novo que se illustra e ennobrece, lançando os fundamentos d'onde deve florir uma raça illustre a quem deixa o seu nome como honroso estimulo, é digno de consideração igual á que se presta áquelle que a recebe transmittida; mas se isto é assim, tambem não é duvidoso, que aquelle que ao merecimento proprio junta os serviços feitos à patria por uma esclarecida e heroica serie de avós distinctos não o é menos, porventura mais, da estima publica; por isso não julgo ocioso dar aqui noticia da illustre ascendencia do nosso Poeta, no que sigo o caminho dos mais biographos que me precederam.

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A familia dos Camaños1 é uma das mais antigas do reino de Galliza, onde desde tempo immemorial tem o seu solar no antigo castello de Camaños, cuja etymologia os amigos do maravilhoso e de novellas fazem derivar de ter uma senhora d'esta casa recorrido, sendo calumniada na sua honra, á prova do passaro que chamam Camão, cujo destino é morrer, quando dentro da casa de seu dono se commette a mais pequena infracção contra as leis da fidelidade conjugal. Restituida a honra da dama, acrescenta a fabula, quiz o marido em memoria d'este caso conservar o nome do passaro; a esta propriedade singular da ave2 allude o Poeta n'aquellas suas redondilhas:

Experimentou-se algum'hora,
Da ave, que chamão Camão,
Que se da casa onde mora,
Vê adultera a senhora,

Morre de pura paixão.

Se fosse possivel dar credito a exagerações genealogicas, desde o v seculo tinham os Camões ou Camaños assento n'aquelle reino. O bispo de Lugo D. Ordonho affirma que Sandia de Camaño acompanhára a D. Pelaio, e se achára com elle em Covadonga, onde fôra um dos principaes cabos que o acclamára rei, e assistira á sua coroação. Porém abandonando estes tempos tão remotos, e avisinhando-nos a uma epocha, em que os documentos se tornam mais claros, e a critica encontra menos dureza em acreditar, diremos que no principio do seculo XI (1002) apparece um Camaño (Camaño Batez testis) confirmando uma escriptura do antigo mosteiro de Cella nova. No começo do seculo seguinte (1129) dois cavalleiros d'este mesmo appellido fundaram o convento de Tojosoutos, e se metteram monges n'elle, onde esta familia tinha jazigo sumptuoso.

Ruy Garcia de Camaño, que se deve reputar a origem da casa, florecia por este tempo, e se achou no anno 1147 na tomada de Almeria, e foi morto no sitio de Baeza, sendo cercado por um esquadrão de mouros. Foi um dos mais esforçados e poderosos senhores da Galliza; senhor da villa de Rianjo, do estado de Rubianes, Couto de Orocoulo; de dezesete freguezias chamadas as Camoeiras em terra de Salnez e

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de Barcala, com todas as suas jurisdicções e senhorios. Era casado com D. Ilduara Fernandes de Castro, neta do Infante D. Fernando de Navarra, e cunhada de D. Estephania, filha do Imperador e Rei D. Affonso. D'este foi terceiro neto Fernam Garcia de Camaño, que teve dois filhos. O primeiro, Garcia Fernandes de Camaño, seguiu o partido de D. Henrique, e estando na Corunha, e sendo mandado prender por El-Rei D. Pedro, se fortificou em casa, e se defendeu valorosamente: n'elle continuou em Hespanha a varonia d'esta casa, de que são hoje representantes os Senhores de Rubianes, Marquezes de Villa Garcia e Viscondes de Barantes. O segundo fillio, Vasco Fernandes ou Pires de Camões, seguiu o partido do Infante D. Pedro, e se passou a Portugal no anno de 1370 com o desgraçado Conde D. Andeiro e outros fidalgos gallegos, e deu principio n'este reino á familia dos Camões; outros dizem que uma desavença com outro fidalgo poderoso, que cuŝtou a vida ao adversario, deu logar á sua expatriação.

Pela qualidade das doações que lhe fez o soberano-portuguez se conhece bem quanto lhe foi aceito, e qual era a valia do novo vassallo, pois no anno de 1373 lhe fez El-Rei D. Fernando mercê das villas do Sardoal, Punhete, Marvão, Villa nova de Anços, e das terras e herdades em Extremoz, Aviz e Evora que foram da Infante D. Beatriz, e juntamente lhe deu a quinta do Judeu em Santarem, e mais as Alcaidarias de Portalegre e Alemquer, e os senhorios do concelho de Gestaço, e do castello de Alcanede, mercês todas que se acham registadas nos livros da Chancellaria de El-Rei D. Fernando; e sua mulher a Rainha D. Leonor Telles o deu por aio a seu sobrinho D. Affonso, Conde de Barcellos.

Seguiu primeiro o partido de El-Rei D. Fernando contra D. Henrique II, em o que fez grandes serviços à corôa de Portugal, e por morte de D. Fernando abraçou o partido de sua viuva a Rainha D. Leonor e sua filha D. Beatriz, e ficando prisioneiro na celebre batalha de Aljubarrota, perdeu o senhorio de todas as terras, alcaidarias e castellos, conservando apenas, por benignidade real, as herdades que tinha em Evora, Extremoz e Aviz, e outros bens que possuia em Alemquer e Lisboa, dos quaes seus descendentes fizeram morgados de rendimento, principalmente em Evora e Aviz, onde possuia muitas fazendas, a que chamaram as Camoeiras em memoria de seu primeiro possuidor.

Mas não foi só pela nobreza de sangue e animo valoroso, que se distinguiu o ascendente do nosso Poeta, mas pela cultura das letras, e estro poetico de que era dotado, pois conforme uma carta do Marquez

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de Santilhana, citada por Sarmiento, consta ter sido um dos melhores poetas do seculo XIV, e de quem se conservavam poesias manuscriptas em um Cancioneiro que pertencia a D. Maria de Cisneiros, avó do dito Marquez, as quaes não chegaram ao nosso tempo. Um fragmento d'estas poesias nos persuadimos que o leitor póde ver nos dois sonetos escriptos em lingua gallega, que se encontram entre os do nosso Poeta, e que os compiladores provavelmente introduziram entre os outros por os acharem debaixo do mesmo cognome, attribuindo ao neto o que pertencia ao avô.

Esta veia poetica de familia se tornou extensiva a mais de um membro d'ella, pois alem do nosso eximio Poeta, florescia no mesmo tempo e na mesma arte o seu parente o padre Simão Vaz de Camões 2, da Companhia de Jesus.

Casou Vasco Pires de Camões com Francisca, ou Maria Tenreiro, filha herdeira de Gonçalo Tenreiro, que se appellidou Capitão mór das armadas de Portugal, e teve filhos

Gonçalo Vaz de Camões,

João Vaz de Camões,

D. Constança Pires de Camões.

Do primogenito, Gonçalo Vaz de Camões, descendem muitas familias illustres d'este reino, e entre estas a do Visconde de Villa Nova de Souto de El-Rei, chefe do primeiro ramo, e a casa dos Marquezes de Angeja, hoje incorporada na dos Condes de Peniche.

De Constança Pires provem os Severins, a cuja familia parece que pertencia Gaspar Severim de Faria e Manuel Severim, aos quaes devemos, a um, possuir o primeiro retrato do Poeta, e ao outro, uma biographia.

João Vaz de Camões, segundo genito de Vasco Pires de Camões, foi vassallo de El-Rei D. Affonso V, a quem serviu nas guerras de Africa e Castella: viveu em Coimbra e foi Corregedor da comarca da Beira, cargo que houve em recompensa dos seus serviços. Jazia em uma sepultura rica no claustro da Sé velha de Coimbra, e n'ella se lia um epitaphio que fazia menção dos varios successos da sua vida 3. Casou com Ignez Gomes da Silva, filha natural de Jorge da Silva, de quem houve Antão Vaz de Camões, casado com D. Guiomar da Gama, dos Gamas do Algarve. D'estes foi filho Simão Vaz de Camões, casado com Anna de Sá de Macedo, e d'elles nasceu o nosso Poeta.

1 Vide nota 15."

2 Vide nota 16"

3 Vide nota 17."

O que se tem referido de seu pae, Simão Vaz de Camões, é pouco ou para melhor dizer, quasi nada. Sabemos officialmente que tinha o foro de Cavalleiro fidalgo, e que parte da vida a viveu em Coimbra, d'onde parece que era natural, e a outra parte em Lisboa no sitio da Mouraria. Pedro Mariz conta que indo por capitão de uma nau para a India, naufragára á vista de Goa, salvando-se em uma tábua, e que por fim por lá morrêra; porém o seu nome não se encontrou com tal emprego nos historiadores da India, nem em uma relação que percorremos de todas as armadas e seus respectivos capitães que saíram para a India desde o principio da descoberta.

Manuel de Faria e Sousa, seguindo o primeiro biographo do Poeta, affirmou o mesmo erro na sua primeira biographia; o assento, porém, que depois encontrou da Casa da India o fez emendar aquelle erro, em o qual têem laborado a maior parte dos biographos, alguns mesmo ainda depois da descoberta do registro official encontrado por Faria e Sousa. Mr. de Magnin, membro do Instituto de França, em uma biographia sua que precede a traducção dos Lusiadas de Millié, ultimamente retocada e emendada por Mr. Dubeux, querendo conservar a tradição, conciliando-a com a probabilidade, assevera ter acontecido ao avô do nosso Poeta o naufragio de que se dizia ter sido victima o pae. É verdade que um certo Antão Vaz assistiu com Affonso de Albuquerque á tomada de Goa, porém se pertencia á familia dos Camões, é o que absolutamente ignorâmos. O que de Simão Vaz de Camões sa-bemos, é que elle era morador na Mouraria, onde residiu no anno de 1550; que se passou depois a viver em Coimbra; e que em 15 de Junho de 1553 o enviava preso para Lisboa o Corregedor de Coimbra com uma devassa por ter entrado no convento das religiosas de Sant'Anna d'aquella cidade 1; e que a 10 de Dezembro de 1563 ainda era vivo e morador na mesma cidade, pois d'esta data achámos um alvará passado a pedido de Fr. Martinho de Ledesma, reitor do collegio de S. Thomás de Coimbra, da Ordem de S. Domingos, pelo qual El-Rei faz mercê ao dito collegio de S. Thomás de Coimbra, para que Simão Vaz de Camões, cavalleiro fidalgo da sua Casa, e morador na cidade de Coimbra, seja isento de servir o cargo de almotacé ou outro officio publico, por espaço de dez annos contados da feitura do dito, servindo a esse tempo de procurador e recebedor do dito convento, como dizia que o fazia 2.

1 Documento A.

2 Documento B.

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