Imagens da página
PDF
ePub
[ocr errors]

O rudo canto meu que resucita
As honras sepultadas,

As palmas já passadas

Dos belicosos nossos Lusitanos,

Para thesouro dos futuros annos
Comvosco se defende

Da ley Lethea á qual tudo se rende.

Na vossa arvore ornada de honra, e gloria

Achou tronco excellente

A hera florecente,

Para a minha até aqui de baxa estima,
E n'ella subireis

Tão alto quanto os ramos estendeis.

O bello episodio do nosso insigne poeta Visconde de Almeida Garrett, no seu poema intitulado Camões, em que representa o Poeta lendo em Cintra os seus Lusiadas ao joven Soberano, não me parece uma simples ficção; eu estou persuadido que elle teve accesso junto ao Monarcha, e pôde fazer-lhe a leitura do seu poema. E como não havia excitar-se a imaginação guerreira do Principe ao ver tão altamente apregoadas as façanhas de seus maiores? que desejo de as exceder? como não seria agradavelmente preoccupado durante todo o tempo da leitura? Porém se alguma vez se aborreceu ao ouvir as verdades duras e amargas, que por mal dos Reis sempre lhes desagradam, ou os ministros e validos se resentiram de alguns tiros penetrantes, que parecem disparados pelo corpo do poema, o enthusiasmo novamente recobrado

do Rei, os applausos dos ouvintes, e a auctoridade do Mecenas deviam soffrear a malquerença, isto é, sejamos francos, se a houve da parte dos offendidos.

XVIII

Não podemos dissimular que o Poeta se achou pouco satisfeito com a recompensa, e parece queixar-se de uma personagem que

Razoens aprende, e cuida que he prudente,
Para taxar com mão rapace e escassa

Os trabalhos alheos que não passa.

A satyra de André Falcão de Resende 1, dirigida e dedicada ao nosso Poeta, é mui importante para que aqui deixemos de dar a parte d'ella que diz respeito a este assumpto. N'esta satyra, na qual o poeta reprehende aquelles que desprezando os doutos, gastam o seu com truães, dirigindo-se especialmente ao Paço e aos fidalgos, dão a bobos e chocarreiros aquillo que deviam dar ao merecimento e saber, começa notando uma tão estupida barbaridade que grassava:

Quantos annos ha já que a policia

Trabalha em vão em sua fragoa ardente
De apurar huma grossa barbaria!
Quanto engrossou, e se apossou da gente
De esp❜rito vil, que para adelgaça-la
De todo não ha fogo sufficiente!

Esta he, Camões, que quem escreve ou fala
Em numeroso verso, ou segue e usa
A poetica prosa, e quer orna-la:
E o natural engenho applica á Musa,
Alguma hora do pó se levantando,
Logo algum vil esp'rito o nota e accusa.
Vedes o triste (diz aos de seu bando),

Que he bacharel latino, e nada presta,
É poeta o coitado, é monstro nefando.

Indignava-o, talvez, ver o bobo do joven Rei, com a cruz de uma Ordem tão antiga como a de S. Thiago, e gosando de outras commodidades em companhia de outros do mesmo estofo.

Ande o pobre poeta hum doudo feito,
Mendicando o comer e os consoantes,

Compondo seus poemas sem proveito.
Bem tenho eu (diz o vil) por mais galantes
Os truhães chocarreiros com guitarras,
Que aplazem aos reis, aos principes e infantes.
Estes alegres com c'roas de parras

Festejam Bacho e a Ceres todo o anno,
E o prazer tem seguro a quatro amarras.

1 Vide nota 61,"

Nunca lhes falta o pão, calçado e o panno,
Seja hum doudo, é Dom Felix, Dom Briando,
E bem que parvo, é ciceroniano,

Bem que frio; assim basta o ir alçando

Não só casas e quinta, farto e quente,

Mas seu nome com Dom e dões se honrando.

Ó la curiosidad del eloquente

Grão poeta, grammatico facundo,

Faminto, pobre e nú, pique no dente.

Depois de haver notado este desvio da boa rasão, faz o elogio da poesia notando que os Livros Sagrados e a Santa Igreja falla sempre n'esta fórma aos fieis, sendo desde os mais remotos tempos prezada esta arte sublime. Continua o auctor com a mesma queixa da pouca protecção que recebiam os homens de letras, que, com mais affinco e assiduidade, se entregavam nas suas vigilias a exercicios litterarios:

Dão barbaros cada hora mil combates

Aos doutos, e a ferro e fogo os seguem;
Não os socorre Augusto, ou Mecenates.
Mas assim perseguidos, só soceguem
Em sua Musa, e d'agua de Aganippe
A terra inculta, secca e dura reguem.
E bem que aveia esteril se antecipe

Pera afogar a boa semente, e tolha
Que o juizo Real a partecipe;

Não poderá tolher que se não colha

Alguma hora o bom fructo, e o bom esp'rito
Em seguro celeiro, que o recolha.

Transcrevendo estes versos, não podemos deixar de notar que André Falcão de Resende, usando quasi da mesma metaphora de Camões, parece querer aqui alludir aos conselheiros e validos do Rei; e trazendo como exemplo a José do Egypto, pede ao nosso Poeta que solte o sonho, e erga a sua voz, a qual chegando aos affaveis ouvidos do Monarcha, fará com que os bons engenhos e a poesia sejam estimados, d'onde não podemos deixar de inferir que o Poeta, apesar de pouco generosamente galardoado, era comtudo estimado do Soberano, e a sua voz gosava de certa auctoridade.

Camões, bem te confesso, e bem conheço,
Que entre o joio infelice e ma zizania

De tanto mão costume, e em tempo avesso,
Engenhos nascem bons na Lusitania,

E ha copia delles, que he menoscabada
Dos mãos, e nomeada por insania.
Porisso, como preso em tua pousada,

Solta este sonho, e esperta o adormecido
Tempo com tua voz bem entoada;

Qual ella he, clara e pura, em som devido,
Decente, honesto e grave, até que chegue
Áquelle affable e real ouvido.

Farás que estime, que honre, e que a si chegue
Os que bebem na fonte Pegasea;

Que seu favor lhes mostre, e não lh'o negue:
Como o bom Rei da patria da Sereia

Aquelle inclyto Affonso, que amou tanto
Os doutos e avisados d'alta veia.

Então teu celebrado e efficaz Canto

Do estreito do mar Roxo ao nosso estreito,
Aos estranhos será piedade e espanto

Se a ti e aos teus não for honra e proveito.

Mas apesar d'estas queixas que se apresentam por parte de Camões e do seu amigo, apparecem os dois ministros e validos que estiveram ao lado do Rei como enthusiastas pessoaes do Poeta. Pedro de Alcaçova Carneiro, um dos homens mais abalizados em conhecimentos que teve Portugal, e que desde o reinado de D. João III tinha parte principal no governo, perguntando-lhe o Poeta se havia encontrado muitos erros no seu poema, lhe deu em resposta; que um achára muito grande, o qual era, que devia ser tão breve que se retivesse todo na memoria, ou tão longo que nunca se acabasse; e Martim Gonçalves da Camara o vemos apresentar um testemunho publico do seu apreço com o epitaphio que lhe mandou gravar na sepultura, e assim a nossa opinião não póde deixar de ficar perplexa; e principalmente, como mostraremos, a avareza no premio para com o auctor foi devida a rasões mais imperiosas. Em todo o caso se os tiros de Camões se dirigiam ao valido, eu combino perfeitamente com Faria e Sousa, que façanha herculea foi depondo a paixão da chaga recebida, honrar a virtude de quem a recebeu. Com

parando os versos do vi ramo da ode vii, em os quaes o Poeta fallando da sua reputação diz:

Para a minha até aqui de baxa estima,

com o verso da ultima estancia do poema nos Lusiadas, dirigido ao mesmo Rei D. Sebastião

A minha já estimada e leda musa,

se vê bem que o Poeta depois da publicação do seu poema havia subido ao mais alto cume da fama. E na verdade não póde negar-se, apesar da distracção em que os negocios politicos e calamidades do anno traziam os animos occupados, que o poema foi aceito com o maior enthusiasmo, e tão avidamente procurado que no mesmo anno se publicaram duas edições, ou o excessivo gasto da primeira deu logar á con-trafacção, e não obstante a severidade da censura, elle saíu intacto, e apenas com aquellas correcções que o auctor, de combinação com os padres de S. Domingos, julgou opportuno fazer-lhe. Tal foi o respeito e veneração que desde logo se prestou a um poema tão maravilhoso e nacional!

Embora se diga o contrario, esta é a verdade; não nego porém que o Poeta poderia ser estorvado na escolha do maravilhoso, se escolhesse como o Tasso a magia, não só porque, pela Regra Ix que vem no primeiro indice do Santo Officio, todos os livros que tratam de Geomancia, Hydromancia, Aeromancia, Pyromancia, Onomancia, Nigromancia, ou todos aquelles nos quaes se contam adivinhações por sortes, feitiçarias, agouros, prognosticos por modos illicitos e outros quaesquer encantamentos por arte magica são reprovados; mas porque mesmo pelas justiças seculares se procedia contra as pessoas incursas no crime de feitiçaria, e tanto assim que as mesmas justiças tinham entregado ás chammas seis infelizes mulheres, accusadas d'este crime na regencia da Rainha D. Catharina. Tivemos occasião de ver este processo, e n'elle ha uma parte muito analoga com os encantamentos do Tasso na sua Jerusalem liberata; mas não é muito que então se désse credito a estes embustes, se nós ainda na nossa infancia os acreditámos. Todavia estou persuadido de que, aindaque o Poeta tivesse livre escolha, não preferiria outro maravilhoso para o seu poema, porquanto estava inteiramente impressionado pelos seus dois modelos Homero e Virgilio.

« AnteriorContinuar »