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E ainda, nymphas minhas, não bastava
Que tamanhas miserias me cercassem;
Senão que aquelles que eu cantando andava,
Tal premio de meus versos me tornassem:
A troco dos descanços que esperava,
Das capellas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.

Vede Nymphas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,

Que assim sabem prezar com taes favores
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escriptores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porem as cousas em memoria,
Que merecerem ter eterna gloria!

Pois logo em tantos males he forçado,
Que só vosso favor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado,

Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,

Sob pena de não ser agradecido.

XVII

Apesar de tanta indigencia e privações, como aqui vemos, a lisonja, não sãe da boca do Poeta para engrandecer os poderosos, antes põe å luz os seus defeitos com demasiada liberdade. Não era este sem duvida o caminho de medrar.

Eu teria comtudo de censurar Camões, por ter feito coro com todos os outros poetas e mais pessoas, que, com os seus conselhos, levaram El-Rei D. Sebastião à sua perdição, se elle ao mesmo tempo, como soldado veterano, lhe não aconselhasse, que ouvisse os homens da arte e experimentados, como indigitando-lhe os D. Luiz de Athaide, Leoniz

Pereira, D. João de Mascarenhas e outros, azados aos combates da Africa e da Asia. Os jesuitas carregam com todo o peso d'esta accusação, que póde muito bem ser repartido pelas outras classes da sociedade, pois todos tomaram parte nas intrigas que se moveram para se apoderarem da influencia na minoridade do joven Principe; mas em todos existia o mesmo pensamento de educarem o Soberano em principios excessivamente religiosos, o que se deve imputar não só a erros seus, mas a necessidade da epocha, em que appareciam novidades religiosas que abalavam a unidade catholica. O exemplo da Allemanha e Inglaterra, e mais que tudo a crise por que passava o reino de França, e os insultos que soffria a nossa bandeira dos discolos em religião n'aquelle reino, aliás com titulo de Christianissimo, já nos mares, passando á espada a nossa frota que vinha do Brazil, já incendiando e talando a perola do Oceano1, a viçosa ilha da Madeira, os mouros ousados ao ponto de virem fazer desembarques na nossa costa do Algarve 2, tudo tornava de assisada politica radicar no joven Rei, não sómente principios religiosos, mas ainda cavalheirosos que o incitassem a imitar os Reis seus antecessores, que animados dos mesmos sentimentos conquistaram este reino e o dilataram até os confins do mundo. Os jesuitas, que eram n'aquelle tempo a guarda real do Catholicismo, e que eram especialmente destinados para a sua propagação nas terras dos infieis, e a quem se deve, n'isto faça-se-lhe justiça, a Europa não ter tantas religiões como cabeças, deviam ser exagerados nos principios religiosos, e não ha duvida que educaram o Principe portuguez incutindo-lhe a idea de conquistas sobre os infieis, apresentando-lhe até esta idéa nos proprios treslados da escripta, o que fez dizer a um fidalgo, mostrando-lhe o valido Martim Gonçalves aquelle treslado: Sim, mas nunca El-Rei o fará emquanto eu tiver vida, sem nos deixar cinco a seis filhos. Não ha duvida que os jesuitas incutiram no seu real discipulo, permitta-se-me a expressão, este quixotismo guerreiro, que achando materia disposta em um mancebo ardido, o levou à sua ruina; mas nos ultimos tempos, quando se resolveu a funesta expedição, já Martim Gonçalves da Camara 3 não estava no agrado real, mas sim havia occupado a direcção dos negocios Pedro de Alcaçova Carneiro, que, habil cortezão e estadista, procurava, não deixando de lisonjear a vontade do Soberano, dilatar a expedição;

1 Vide nota 56."

2 Vide nota 57.a

3 Vide nota 58.a

mas nada pôde ter mão no fogoso mancebo que dava ouvidos aos moços em preferencia dos experimentados.

É notavel o sermão pregado pelo celebre Jesuita o padre Luiz Alvares1, nas exequias que se celebraram em Lisboa por occasião do desbarate do Rei em Africa, pelo qual se vê que na Companhia havia ao menos divergencia, ou não se approvava a saída do Rei para aquella expedição; n'este sermão se queixa das meninices e loucuras que a precederam, appella para o seu auditorio, a quem chama por testemunha de quanto elle a desapprovava, e pregava contra ella, tendo-o então todos por doido, e no seu discurso se notam estas palavras dirigindo-se ao Rei já defuncto: «Nam morreste vos meu Rei como Judas, nem como covarde, vossas mãos não forão atadas como cativo, vossos pés não trouxerão braga, nem vos ferirão por detraz como quem fugiu, nam dissestes meu Rei, nam me mateis, estimastes mais a honra que não a vida, deste la em sacrificio pela fée em serviço de vosso Deus, em remedio de vosso povo; que ainda que tinheis condiçam autorizada, porém com grandes desculpas, Rei, de menino criado em vontade, com fumos de Emperador de Marrocos, levantado com authoridades de muitas mentiras, entonadas com tantos capellos, assopradas com tantas letras e tanta nobreza, nam era muito que vos levassem onde vimos; e sobre tudo nenhuma culpa tendes meu Rei, porque vossos avessos, se o eram, correndo a edade poderam ter emenda: pois quem vos matou meu fremoso? matou-vos o Bispo, matou-vos o clerigo, matou-vos a freira, matou-vos o grande, matou-vos o privado, matou-vos o baxo, matei-vos eu, matamos-vos todos, pois entre nós nam ouve hum tanoeiro que lhe tirasse a mão pela redea como se fez a outro Rei deste reino. >>

Não querendo comtudo, com isto, de maneira alguma desculpar os jesuitas pela ambição que mostravam, desviando-se do seu instituto de pobreza, direi que n'este caso foram arrastados como todos, uns com mais reflexão, outros com menos, por este pensamento politico, que era e com muita rasão o da epocha.

Resta fazer uma observação, e é esta, que se os jesuitas não estivessem ao lado do Principe, as suas idéas teriam mudado? Eu estou persuadido que não. Como temos visto, que se devia fazer a guerra aos infieis, era um axioma politico; se se devia escolher a Africa ou a Asia, era um problema a resolver. Já El-Rei D. Manuel tinha pensado em

1 Vide nota 59.a

passar á Africa, e no reinado de seu successor El-Rei D. João III, se escrevia d'ali que mandasse Sua Alteza um filho, para ser coroado em Marrocos, e se debateu em conselho se o proprio Rei deveria passar aquellas possessões. Desde o reinado d'El-Rei D. João II, que a espada dos nossos Reis se tinha mettido na bainha, não só pela longinquidade das conquistas, mas porque as que tinham mais ao pé da porta não se reputavam empreza sufficiente para um Rei; e assim creou-se novamente o pensamento de estender a monarchia onde a falsa politica, ou antes a difficuldade de meios que se apresentavam para sustentar tão vastas possessões uma nação tão pequena, tinha anteriormente feito abandonar algumas praças. Creando-se o Rei n'estes principios, quem quer que fosse que dirigisse a sua educação, lh'os faria abraçar.

Quando se tratava d'este ponto delicado, foram varios os alvitres. Seu aio D. Aleixo de Menezes e o Conde de Vimioso opinaram que se entregasse a sua educação a um clerigo fidalgo a quem se remunerasse com uma mitra, outros, que de fóra viesse o mestre; mas sobretudo, no que versou mais a contestação, foi se seria da Ordem dos jesuitas, dos dominicanos ou dos eremitas de Santo Agostinho, indigitando-se por parte dos dominicanos o celebre Fr. Luiz de Granada, e dos eremitas de Santo Agostinho o padre Montoja, que por algum tempo, conjuntamente com o padre Luiz Alvares, deu a lição a El-Rei. Ora perguntarei eu se prevalecessem os segundos, isto é, os dominicanos, seriam estes mais moderados, e as idéas do Principe menos exaltadas? O leitor que decida,

Mas voltemos ao nosso Poeta, a quem parece que temos esquecido, é que deixamos desembarcado e regressando á patria. Parte do anno em que chegou e do seguinte de 1571, levou o Poeta em apromptar para a imprensa o seu poema dos Lusiadas, traçado talvez em Portugal, continuado na India e Macau e já começado a limar em Moçambique, e publicado com admiração geral no principio do anno de 1572, tendo-seThe concedido o privilegio para sua impressão1 a 4 de Setembro de 1571. Não sabemos se o Poeta foi o proprio que publicou o seu poema, ou se o vendeu a algum editor; no privilegio attende-se á eventualidade da graça passar do proprietario para outro possuidor, que talvez fosse o impressor Antonio Gonçalves, em cuja officina se imprimiu. Havia Camões, desde a sua estada na India, tencionado offertar o seu poema a

1 Documento D.

El-Rei D. Sebastião; porém como havia de chegar á presença do mancebo Real, que comquanto tivesse recebido uma educação litteraria só tratava a dureza das armas, o Poeta pobre, desvalido e desconhecido do Soberano como elle mesmo diz:

Mas eu que fallo humilde, baxo e rudo
De vós não conhecido nem sonhado.

Recorreu o Poeta ao seu antigo amigo D. Manuel de Portugal 1, fidalgo pertencente a uma familia a quem deveu favores, e por ultimo a mortalha, fazendo-lhe ver o seu poema, e elle tambem poeta se declarou o seu protector, como o nosso Vate manifesta na ode vi que lhe dirigiu, na qual lhe pinta a miseria que o opprime entre os applausos geraes, que recebia pela composição do seu poema.

Sempre foram engenhos peregrinos

Da fortuna invejados,

Que quanto levantados

Por hum braço nas azas são da fama,
Co' o pezo e gravidade

Os oprime da vil necessidade.

Não posso resistir a transcrever aqui os tres ramos d'esta ode, em os quaes o Poeta se expressa grato pelos favores recebidos d'este fidalgo; consistiram estes, a meu ver, não só na simples apresentação no Paço, mas em tomar a si e promover a publicação do poema, esmagando com a sua auctoridade qualquer caballa que a inveja ousasse erguer contra o merecimento do Poeta, a qual com vergonha temos a confessar, que existiu por parte de alguns poetas seus contemporaneos.

Imitando os espiritos já passados,

Gentis, altos, Reaes,

Honra benigna dais

A meu tão baixo quão zeloso engenho,
Por Mecenas a vós celebro e tenho,

E sacro o nome vosso

Farei, se alguma cousa em verso posso.

1 Vide nota 60."

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