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não seria para fazer rebentar de riso os mortaes, nem mesmo agora, neste mortal periodo de desinfecções e hygiene à outrance. Mas que pensam os senhores dessas quadrinhas, das quaes já se venderam mais de cem mil folhetos, das quaes diariamente e perpetuamente se vendem mais volumes que da « Chanaan » de Graça Aranha? Os testamentos são uma lamentavel relação de legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso.

O galo leva quarenta quadras a deixar cousas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do papagaio ha esta observação pessoal, sempre aplicavel ás camaras :

Ha no mundo papagaios
Que falam todos os dias
E nunca sofrem desmaios
Commendo grossas maquias.
Estes são de Pernambuco,
Falam muito, são mitrados;
Eu falei, mas fui maluco,

Logo paguei meus pecados.

E falam do veneno da literatura franceza, que perde o cerebro das meninas nervosas e augmenta o nosso crescido numero de poetas! Que se dirá dessa literatura pasto mental dos caixeros de botequim, dos rapazes do povo, dos vadios, do grosso, emfim, da população? Que se dirá desses homens que vão inconscientemente ministrando em grandes dóses aos cerebros dos simples

a admiração pelo esfaqueamento e o respeito da tolice?

Como eu clamasse contra essa teimosa mania de não mudar as suas predileções, um dos vendedores ambulantes, o cantante Meu Deus que noite sonorosa, esticou a perna e disse-me :

Talvez fosse para peior...

Parei, convencido, o curso das interrogações. Já outro philosopho seu rival, Montaigne, assegurava que mudar é quasi sempre uma probabilidade para o peior. Os vendedores de testamentos passaram a vendel-os como palpites do jogo do bicho, transformando a saracura em avestruz e a mosca em borboleta. Os jogadores não lêm, mas arruinam as algibeiras. E de qualquer fórma o mal continúa a florecer neste baixo mundo, na literatura e fóra della, como o mais gostoso dos bens. Si nas obras populares aparecer alguma cousa de novo, com certeza teremos tolices

maiores que as anteriores...

A pintura das ruas

Ha duas cousas no mundo verdadeiramente fatigantes ouvir um tenor celebre e conversar com pessoas notaveis. Eu tenho medo de pessoas notaveis. Si a notabilidade reside num cavalheiro dado á poesia, elle e Lecomte de Lisle, elle e Baudelaire, elle e Apollonius de Rhodes desprezam a critica e o Sr. José Verissimo; si o successo acompanha o individuo dado á critica, este paiz é uma cavalariça sem palafreneiros; e si por acaso a Fama, que os romanos sabios confundiam com o falso boato, louva os trabalhos de um pintor, elle como Mantegna, elle como Leonardo Da Vinci, elle como todos os grandes, tem uma vida de tormentos, de sacrificios, de ataque aos seus processos; e jámais se julga recompensado pelo governo, pelo paiz, pelos contemporaneos, de ter nascido numa terra

de bugres e numa época de revoltante mercantilismo. É fatigante e talvez pouco util. Um homem absoluta, totalmente notavel só é aceitavel através do cartão postal porque afinal fala de si, mas fala pouco. Foi, pois, com susto que hontem, domingo, recebi a proposta de um amigo:

Vamos ver as grandes decorações dos pintores da cidade?

Hein? Estás decididamente desvairando. As grandes decorações? Uma visita aos ateliers? Não; a outros locaes.

E havemos de encontrar celebridades?

Pois está claro. Não ha cidade do mundo onde haja mais gente celebre que a cidade de S. Sebastião. Mas não penses que te arrasto a ver algum Victor Meirelles, alguns Castagnetto apocryphos ou os trabalhos aclamados pelos jornaes. Não! Não é isso. Vamos ver, levemente e sem custo, os pintores anonimos, os pintores da rua, os heroes da tabolela, os artistas da arte pratica. É curiosissimo. Ha lições de philosophia nos borrões sem perspectiva e nas « botas » sem desenho. Encontrarás a confusão da populaça, os germens de todos os generos, todas as escolas e, por fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada.

Era domingo, dia em que o trabalho é castigar o corpo com as diversões menos divertidas. Sahi, de vagare a pé, a visitar bodegas réles, logares bizarros, botequins inconcebiveis, e vim arrazado de confusão cerebral e de encanto. Quantos pintores pensa a cidade que possue? A estatistica da Escola é falsissima. Em cada canto de rua depara a gente com a

obra de um pintor, cuja existencia é ignorada por toda a gente.

O meu amigo começou por pequenas amostras da arte popular, que eu vira sempre sem prestar attenção: os macacos trepados em pipas de paraty, homens de olho esbugalhado mostrando, sob o verde das parreiras, a excellencia de um quinto de vinho, umas mulheres com mólhos de trigo na mão apainelando interiores de padarias e talvez recordando Céres, a fecunda. Depois iniciou a parte segunda :

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Vamos entrar agora nas composições das marinhas. Os pintores populares afirmam a sua individualidade pintando a Guanabara e a praia de lcarahy. Por essas pinturas é que se vê quanto o << ponto de vista » influe. Ha o Pão de Assucar redondo como uma bola, no Estacio; ha o Pão de Assucardo feitio de uma valise no Andarahy; e encontras o mesmo Pão, comprido e fino, em S. Christovão. O povo tem uma alta noção dos nossos destinos navaes; a sua opinião é exactamente a mesma que a do ministro da marinha- rumo ao mar! Por isso, não ha Guanabara pintada pelos scenographos da calçada que não tenha á entrada da barra um vaso de guerra. A parreira com o bebado tem uma conclusão fatal carga ao mar!

E depois?

Depois entrámos nas grandes telas, as grandes telas que a cidade ignora.

Estavamos na rua do Nuncio. O meu excellente amigo fez-me entrar num botequim da esquina da rua de S. Pedro e os meus olhos logo se pregaram

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