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Para comprehender a psychologia da rua não basta gosar-lhe as delicias como se gosa o calor do sol e o lirismo do luar. E' preciso ter o espirito vagabundo, cheio de curiosidades malsas e os nervos com um perpetuo desejo incomprehensivel, é preciso ser aquelle que chamamos flaneur e praticar o mais interessante dos sports a arte de flanar. E' fatigante o exercicio?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horacio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Ahi está um verbo universal sem entrada nos dicionarios, que não pertence a nenhuma lingua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e reflectir, é ser basbaque e commentar, ter o virus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por ahi, de manhã, de dia, á noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha alli á esquina, seguir com os garotos o luctador do Casino vestido de turco, gosar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas magicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saude, depois de ter ouvido os dilettanti de casaca applaudirem o máo tenor do Lyrico numa opera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande téla paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessario ir até um sitio lobrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sor

rir, um perfil que interessa, um par joven cujo riso de amor causa inveja...

E' vagabundagem? Talvez. Flanar é a distincção do perambular com intelligencia. Nada como o inutil para ser artistico. D'ahi o desocupado flaneur ter sempre na mente dez mil coisas necessarias, imprescindiveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janella como Paul Adam, admira o kaleidoscopio da vida no épitome delirante que é a rua; á porta do café, como Poë no Homem das Multidões, dedica-se ao exercicio de advinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. E' uma especie de secreta á maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionaes. Haveis de encontral-o numa bella noite ou numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis de certo estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flaneuré o bonhomme possuidor de uma alma igualitaria e risonha, falando aos notaveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da colera e da necessidade do perdão...

O flaneur é ingenuo quasi sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno «< convidado do sereno» de todos os bailes, quer saber a historia dos bolieiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da historia, como se sabe a historia dos amigos (quasi sempre mal), acaba com a vaga idéa de que todo o espectaculo da cidade foi feito especialmente

para seu goso proprio. O balão que sobe ao meio dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de musica tocam nas praças para alegral-o; si nuin beco perdido ha uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão alli para divertil-o. E de tanto ver o que os outros quasi não podem entrever, o flaneur reflecte. As observações foram guardadas na placa sensivel do cerebro; as phrases, os ditos, as scenas vibram-lhe no cortical. Quando o flaneur deduz, eil-o a concluir uma lei magnifica por ser para seu uso exclusivo, eil-o a psichologar, eil-o a pintar os pensamentos, a phisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebivel futilidade dos pedestres da poesia de observação...

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e immovel.

Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destino iguaes aos do homem.

Porque nascem ellas? Da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociaes, de interesses commerciaes, dizem. Mas ninguem o sabe. Um belo dia, alinha-se um tarrascal, corta-se um trecho de chacara, aterra-se um lameiro, e ahi está nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar os primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualida de. Os homens

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tèm no cerebro a sensação dessa semelhança, e assim como dizem de um rapagão :

Quem ha de pensar que vi este menino a

engatinhar! Murmuram:

Quem ha de dizer que esta rua ha dez annos só tinha uma casa!

Um cavalheiro notavel, ao entrar comigo certa vez na rua Senador Dantas, não se conteve :

- E' impossivel passar por aqui sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da provincia esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps no Guarda Velha a tres vintens!

Eu sorria, mas o pobre sujeito importante dizia isso como se recordasse os dois primeiros dentes de um homemzarrão, com uma dentadura capaz actualmente de morder as algibeiras de uma sociedade inteira. Era a recordação, a saudade do passado começo. Ha nada mais enternecedor que o principio de uma rua? E' ir vel-o nos arrabaldes. A principio capim, um braço a ligar duas arterias. Percorre-o sem pensar meia duzia de creaturas. Um dia cercam á sua beira um lote de terreno. Surgem em seguida os alicerces de uma casa. Depois de outra e mais outra. Um combustor tremeluz indicando que ella já se não deita com as primeiras sombras. Tres ou quatro habitantes proclamam a sua salubridade ou o seu socego. Os vendedores ambulantes entram por ali como por terreno novo a conquistar. Aparece a primeira reclamação nos jornaes contra a lama ou contra

o capim. E' o baptismo. As notas policiaes contam que os gatunos deram num dos seus quintaes. É a estréa na celebridade, que exige o calçamento ou o prolongamento da linha de bondes. É, insensivelmente, ha na memoria da população, bem nitida, bem pessoal, uma individualidade topographica a mais, uma individualidade que tem phisionomia e alma.

Algumas dão para malandras, outras para austéras; umas são pretenciosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrella ou sob um signo máo, dando-lhes glorias e sofrimentos, matando-as ao cabo de um certo tempo.

Oh! sim, as ruas têm alma! Ha ruas honestas, ruas ambiguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, tragicas, depravadas, puras, infames, ruas sem historia, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleeneticas, snobs, ruas aristocraticas, ruas amorosas, ruas coyardes. que ficam sem pinga de sangue...

Vêde a rua do Ouvidor. E' a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo os taipaes das montras á mais leve sombra de perigo. Esse beco inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente opposicionista creou o boato, o «< diz-se...» aterrador e o « fecha

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