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Posé Teixeira

A Rua

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda intima não vos seria revelado por aim si não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguaes; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a policia, policia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. E' este mesmo o sentimento imperturbavel e indissoluvel, o unico que, como a propria vida, resiste ás idades e ás épocas. Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o odio, o egoismo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia. Os seculos passam, deslisam, levando as coisas futeis e os acontecimentos notaveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fal-a dizer:

Je suis la rue, femme éternellement verte,
Je n'ai jamais trouvé d'autre carrière ouverte
Sinon d'être la rue, et, de tout temps, depuis
Que ce pénible monde est monde, je la suis...

A verdade e o trocadilho! Os dicionarios dizem : Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia. » E Domingos Vieira, citando as Ordenações : « Estradas e ruas pruvicas antiguamente usadas e os Rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas ». A obscuridade da grammatica e da lei! Os dicionarios só são considerados fontes faceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte encyclopedias, manuseai in-folios especiaes de curiosidade. A rua era para elles apenas um alinhado de fachadas, por onde se anda nas povoações...

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um factor da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarès ou em Amsterdam, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céos mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miseria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxilio dos deuses emquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o applauso dos mediocres, dos infelizes, dos miseraveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenora

dos de leão avaro, nem á velha Patti para admirar um fio de vóz velho, fraco e legendario. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem vóz, rouquejam com fome para alegral-a e para comer. A rua é generosa. O crime, o delirio, a miseria, não os denuncia ella. A rua é a transformadora das linguas. Os Candido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Candido. A rua continúa, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionarios as palavras que inventa, creando o calão que é o patrimonio classico dos lexicons futuros. A rua resume para o animal civilisado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das arvores e no trinar dos passaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Ha suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exhaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéa tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miseria da criação, e por isso é a mais igualitaria, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua creou todas as blagues e todos os logares comuns. Foi ella que fez a magestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi tambem ella que baptisou o immortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sabios, e os charlatães, que

a lisonjeiam e lhe resumem a banalidade, são da primeira occasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaría á noite, treme com a febre dos delirios, para ella como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ella não ha o despertar triste, e quando o sol desponta e ella abre os olhos esquecida das proprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostalgico dos pregões tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céo e com os anjos...

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A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua creou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabolico que tem dos gnomos e dos sylphos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lagrimas, de patifarias e de crimes irresponsaveis, de abandono e de inédita philosophia, tipo exquisito e ambiguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodigio de uma criança mais sabida e sceptica que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpetua, vóz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, creatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e póde rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d'oiro que se faz lama e torna a ser poeira-a rua creou o garoto!

Essas qualidades nós as conhecemos vagamente.

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