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lianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis. Mas é bem pago!

Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de concertadas, por seis e sete mil reis! É o mesmo que acontece aos mulambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver os belchiores compram as roupas para vendel-as com quatrocentos por cento de lucro. Ha ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre publico e da falsificação para o burguez incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sargetas e as calçadas á cata de selos dos maços de cigarros e selos com aneis e os rotulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os aneis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 reis. Imagina uns cem selistas a cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5 0/0 os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de de todos os charutos comprados neste paiz de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatistica, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas...

Gente pobre a morrer de fome, coitados...
Oh! não. O pessoal que se dedica ao oficio

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não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham tambem na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e á porta das charutarias.

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Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

Mas os aneis dos charutos?

Oh! isso então é de primeirissima. Os selistas têm logar certo para vender os rotulos dos charutos Bismarck, -em Nictheroy, na travessa do Senado. Ha casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Directoria de Saude. Ratoeiro não é um cavador é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao suburbio, tocando uma cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cançado, senta-se na calçada e espera tranquilamente a freguezia, soprando de espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rotulas ha quem os chame;
á porta das estalagens afluem mulheres e crianças.
O ratoeiro, aqui tem dez ratos!
Quanto quer ?

Meia patáca.
Até logo!

Mas, ó diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na higiene.

E o meu trabalho?

Uma figa! Eu cá não vou na historia de microbio no pello do rato.

Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?
Hein?

Serve?

Rua!

Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tinhamos parado á esquina da rua Fresca. A vida redobrava ahide intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, phonographos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navaes, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas ás esquinas, á beira do kiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinellinho na ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexivel, marinheiros, bombeiros, tunicas vermelhas de fuzileiros - uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxuria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço

aos exercicios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

Vês? Aquelle pequeno é marcador, faz taluagens, ganha a sua vida com tres agulhas e um pouco de graxa, metendo corôas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano mulambeiro aproveita o estado de semi-dôr e semiinercia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos... um psichologo, como todo os da sua raça, psichologo como as suas irmãs que lêem a «< buen adicha » por um tostão e amam por dez com consentimento d'elles...

Oh! essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio póde conhecer muito bem a vida do burguez de Londres, as peças de Paris, a geogrophia da Mandchuria e o patriotismo japonez. A apostar, porém, que não conhece nem a sua propria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exoticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miseria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e tambem quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

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Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua philosophia. O catraeiro appareceu rubro de colera, e subtilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e cahiu-lhe em cima de chofre.

Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se livido. Ao grito do catraeiro acudiam, numa sarabanda de chinellas, fufias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes. Gatuno! Então vendes como ouro um anel

de «
plaquet»? Espera que te vou quebrar os
queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhal-o
com uma bofetada. O cigano porém cahiu num
bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre
a aglomeração da gentalha, que ria. O catraeiro,
mais corpulento, mais pesado, precipitou-se tam-
bem.

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Os vagabundos, com o selvagem instincto da caça, que persiste no homem acompanharamno. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros reverberos, á disparada entre os squares successivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano mulambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todos as profissões, tem tambem malandros.

Então Eduardo sentenciou.

-Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses uteis conhecimentos. Mas, si esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

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