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violão, cabras de serestas e, antes de tudo, garotos mesmo aos quarenta annos. O malandro brasileiro é o animal mais curioso do universo, pelas qualidades de indolencia, de sensualidade, de riso, de vivacidade de espirito. As quadras pornographicas são em numero extraordinario; as que exprimem paixão são constantes, posto que o malandro não as faça sinão para ser admirado pelos outros e independente de amar qualquer senhora das suas relações. Um gatuno afirmou me que a a modinha A cór morena era de um seu amigo. Na cór morena ha este pensamento de um perfume oriental:

Fui condemnado
Pela açucena
Por exaltar

A côr morena...

Onde se vê o bom humor dos presos é principalmente nas quadras sobre acontecimentos politicos. O guarda Antonio Barros, que se dava ao trabalho de acompanhar as minhas horas de penitenciaria voluntaria, forneceu-me as seguintes remetidas por um dos detentos:

Meus amigos e camaradas
As cousas não andam boas
Tomaram Porto-Arthur
Na conhecida Gamboa

Logo o Cardoso de Castro
Ao seu Seabra foi falar
Para deportar desordeiros
Para o alto Juruá

Mas eu que não sou de ferro
Meu corpo colei com lacre
Que não gosto de chalaças

Lá nos borrachas do Acre.

O exhibicionismo, o reclamo, a vaidade, estas cousas que enlouquecem Sarah Bernhardt e talvez a todos nós, enlouquecem tambem os presos. Ha a principio uma hesitação. Depois, os documentos são abundantes. Ser poeta é ser alguma cousa mais do que preso, e um negralhão capoeira, um assassino como o Bueno ou o José do Senado, após o testemunho da rima falam mais livremente e com maior franqueza. Em duas semanas de Detenção colecionei versos para publicar um copioso cancioneiro da cadeia. Ha poesias de todos os generos, desde o lundú sensual até á nenia chorosa.

Este lundù do famoso Carlos F. P. chega a ser comovente :

Céos... meus! por piedade

Tirai-me desta afflicção!

Vós!... soccorrei os meus filhos
Das garras da maldição!

E o estribilho mais amargo ainda

São horas, são horas

Sãs horas de teu embarque
Sinto não ver a partida

Dos desterrados do Acre.

O Dr. Mello Moraes, que conhece os segredos do violão, deve de certo imaginar o effeito destas pala

vras, á noite, na escuridão, com os bordões a vibrar até ás estrellas do céo...

O Amor, de resto, inunda o Verso detento. Ha, por todos os lados choros, soluços, labios de coral, saudades, recordações, desesperos, rogos:

Não sejas tão inclemente,

Atende aos gemidos meus...

E um encontrei eu que me repetiu, com os olhos fechados, o seu ultimo repente :

Si eu pudesse desfazer

Tudo aquillo que está feito,

Só assim teu coração

Não veria contrafeito.

Era um rapaz palido, como os rapazes fataes nos romances de 1850, mas com

luctador...

uns biceps de

Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade! Cheio de interesse, um papel que me cahia nas mãos, com erros de orthographia, era para mim precioso. Mas afinal, um dia, ao sahir da Detenção com os bolsos cheios de quadras penitenciarias, remoendo phrases de psichologia triste, encontrei no bond. um poeta dos novos, que, ha vinte e cinco annos, ataca as escolas velhas.

São uns animaes! bradou elle, logo após um aperto de mão imperativo. Este paiz está todo errado. Ha mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelos menos, ali com castigos corporaes uma vez por mez!

Mal sabia elle que a Detenção já está cheia.

As quatro idéas

capitaes dos presos

A's vezes, numa volta pelo paleo, a con versar com Obed Cardoso, eu via o elegante dr. Saturino de Mattos passar, como si fosse dar milho ás pombas. E, si depois de admirar o dr. Saturnino apontavam-me, enfiado no zuarte do estabelecimento, com o numero de metal á cinta, modesto gatuno ou um simples assassino cujo comportamento exemplar os transformava em serventes, eu deixava o gentil Obed e gosava o calão dessas interessantes flores de patifaria.

um

Ha na Detenção reincidentes exemplares e casos de psichologia curiosissimos. O Sargento da meia noite, ladrão temivel, uma especie de trans

formista da infamia, é passar os humbraes do jardim onde descança o crime, para se tornar um cordeiro artista, uma especie de frade medievo. Recolhido ao cubiculo, inaugura logo a sua arte de miolo de pão. Faz flores, bonecos, santos, animaes; pinta-os, remira-os, manda-os vender. Parece regenerado. Todos sabem, entranto, que, uma vez livre, o Sargento não resistirá á tentação de invadir a casa alheia. Os punguistas, inofensivos lá dentro, tão certos estão de continuar a roubar que o Braga Bexiga me dizia :

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No dia em que sahir, tomo logo um bonde e limpo a primeira carteira.

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Para quem conhece a arte não ha dificuldades. Eu trabalho desde criança e tive como professor o Zézinho.

Vamos a ver esse trabalho.

Si v. s. me dá licença, eu vou tirar duas notas de duzentos que o sr. Obed poz agora no bolso da calça.

Na outra extremidade da sala, Obed, sem que , ninguem désse por isso, acabara de contar o seu dinheiro e de metel-o no bolso da calça. Bexiga, tremulo, com os olhinhos piscos, continuava ali a exercitar as suas criminosas observações. Capoeiras, assassinos, como Carlito e outros, reincidentes, condemnados a trinta annos, exprimem a certeza de que continuarão lá fóra a vida anterior. Carlito, mesmo, disse-me um dia :

Deus aperta, mas não enforca!

Maxima muito mais profunda que quantas es

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