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Versos de presos

O criminoso é um homem como outro qualquer. No primeiro momento, sob o pavor dos grandes muros de pedra, com um guarda que nos mostra os individuos como si mostrasse as féras de um domador, a impressão é esmagadora. Vê-se o crime, a acção tremenda ou infame; não se vê o homem sem o movimento anormal, que poz á margem da vida. Quando a gente se habitua a velos e a fallar-lhes todo o dia, o terror desaparece. Ha sempre dois homens em cada detento,

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que cometeu o crime e o actual, o preso. Os atcuaes são perfeitamente humanos. Só uma variedade da especie causa sempre nauseas : os

ladrões, os «< punguistas », os « escrunchantes », porque dissimulam, mentem e têm, constante no riso e na palavra, um travo de cynismo. Os outros não. Conversam, contam factos e pilherias, arranjam o pretexto de ir lavar a roupa para apanhar um pouco de sol no lavadouro, são homens capazes até de sentimentos amaveis.

Ora, este paiz é essencialmente poetico. Não ha cidadão, mesmo maluco, que não tenha feito versos. Fazer versos é ter uma qualidade amavel. Na Detenção, abundam os bardos, os trovadores, os repentistas e os inspirados. São quasi todos brasileiros ou portuguezes, criados na malandragem da Saúde. A media poetica é forte. Desordeiros perigosos, assassinos vulgares compõem quadras ardentes, e ha poetas de todos os generos, desde os plagiarios até aos incomprehensiveis. Não sei si a timidez ou outra razão mais obscura os faz assignar as composições poeticas apenas com as iniciaes e quando muito com as iniciaes precedidas do nome de baptismo.

Assigne você o seu nome por extenso! dizia o guarda.

O poeta detento hesitava, punha as iniciaes e, por baixo, entre parenthesis, escrevia o nome. As iniciaes têm que vir fatalmente, são o complemento necessario ao fim da obra. Porque? E' misterioso, mas verdadeiro.

Os assumptos escolhidos pelas iniciaes superiores da Detenção abrangem todas as modalidades do sentir. Como ha plagiarios, o Antonio, crime de ferimentos, que se intitula auctor da modinha.

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Pobre flor que mal nasceste, fatal
Foi a tua sorte, que o primeiro
Passo que deste com a morte deste.
Deixar-te é coisa triste. Cortar-te?

E' coisa forte, pois deixar-te com vida
E' deixar-te com a morte.

Ha tambem poetas eroticos, o Chico Bemtevi, auctor do poema Os Amores de Carlos:

Chiquinha abriu sorrindo

A porta da sua alcova
E Carlos foi logo indo
Com a sede...

Uma sede excessiva! Ha poetas descriptivos, trovadores simples, cançonetistas ocasionaes, todos com um sentimento insistente são patriotas e sofrem injustiça porque nasceram brasileiros.

O preso Carlos, por exemplo, que se assigna Carlos F. P. Nas suas trovas é insistente a preocupação de que está preso porque é brasileiro. Escolho na sua consideravel obra poetica uma modinha cheia de magoas :

Meus senhores, venham ouvir
Do meu peito uma canção
Tirada por um condemnado
Na casa de Detenção.

A's magoas segue-se o estribilho.

São martyrios que se passam
Soffrendo profunda dôr

Ser preso e condemnado
Por vingança é um horror.

Si os martirios fossem enormes, era natural que o Petrarcha novo não compuzesse quadras; mas Carlos P. F. é feróz e continua:

Fui preso sem nenhum crime
Remetido para a Detenção

Fui condemnado a trinta annos
Oh! que dôr de coração.

E surge atinal a preocupação, a idéa fixa :

Sou um triste brasileiro
Victima de perseguição
Sou preso, sou condemnado
Por ser filho da nação.

Ha uma porção de modinhas neste genero. A idéa constante aparece sempre, ou na primeira ou na ultima quadra.

Outro poeta, José Domingos Cidade, é descriptivo. Como toda a gente sabe, o poema epico passou literalmente á cançoneta. Virgilio, Lucano, Voltaire e Luiz de Camões, si vivessem hoje, de certo comporiam os trabalhos de Enéas, a « Pharsala », a « Henriade » e os feitos de Vasco de Gama com refrains ao fim dos versos de mais effeito.

Não ha mais ninguem com coragem para ler um poema heroico, apezar de haver ainda neste mundo de contradições - heroés guerreiros. Só o povo, a massa ignara, ainda acha prazer em ver, em rimas, batalhas ou arruaças. José Domingos, no cubiculo que o veda á admiração dos contemporaneos, escreveu Os successos, cançoneta repinicada, para violão e cavaquinho.

Vejam o poder de descriptiva de Domingos :

Dia quinze de novembro.
Antes de nascer o sol

Vi toda a cavallaria

De clavinote a tiracól.

Isso é incontestavelmente mais bello que o antigo e classico começo epico: «< Eu canto os feitos, ou as armas, ou as guerras civis », de todos os vates e de Lucano, que por signal começa dizendo : « Eu canto as nossas guerras mais que civis nos campos de Emathia.. ». Cidade foi mais urbano, mais immediato cantou a refrega civil da rua da Passagem com exagero apenas. Na segunda quadra, a descripção é soluçante:

As pobres mais choravam
E gritavam por Jesus;
O culpado disso tudo

E' o Dr. Osvaldo Cruz!

Quando o homen predestinado que se chama Oswaldo Cruz pensou que José Domingos o amarrasse ao papel de carrasco em plena Detenção? Para o fim, mesmo em verso, o auctor é modesto e patriota :

O auctor desta modinha
E' um pobre sem dinheiro
Já não declaro-lhe o nome,
Sou patriota brasileiro.

Os companheiros do Prata Preta, pessoal da Saude, são naturalmente repentistas, tocadores de

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