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robusto. « D. Geraldina está? ». Num relampago comprehendi que era elle. « D. Geraldina? Ah! canalha, espera que eu te vou dar a Geraldina! » Saquei do revólver, e minha senhora apareceu assustada : « Fuja, seu Alvaro, fuja! Fuja! ». Ella mandava-o fugir. Como um louco, ergui a arma. Elle descia os degrãos da escada e Geraldina tapara-me a passagem. Detonei uma, duas vezes, descemos de roldão. No patamar, o corpo delle jazia. Matei-o, pensei, acabei a minha vida! E deitei a correr... Só mais tarde, soube a verdade. As balas tinham ferido minha mulher. Elle fingira-se morto e escapara são e salvo. E' por isso que estou aqui. O chefe dos guardas chamara-me ao fundo, para a mesa que fica entre as escadas das galerias superiores.

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Ha ainda dous casos interessantes: um menino e uma mulher. Quer ver? Vou mandar buscar o menino. Sente-se.

Eu sentei-me. Por todas as janellas gradeadas, o sol entrava claro e bemfazejo. Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho côr de azeitona, dessas phisionomias honestas, alheias a devassidões.

- Como se chama?

Elle tomou uma posição respeitosa, falando bem, com desembaraço.

Chamo-me Alfredo Paulino, sim, senhor. Tenho dezoito annos.

- Ejá casado?

Casei aos dezeseis. Os meus parentes não queriam, mas depois o pai disse: « E' melhor mesmo.

Ao menos, não ficas perdido ». Eu já ganhava o suficiente para sustentar dignamente a minha familia. Casei. Foi nessa ocasião que o Dr. Constantino Nery me ofereceu o emprego de copeiro no palacio de Manáos. Acceitei, e voltavamos para o Rio quando a bordo encontrámos um rapaz de dezoito annos, chamado José.

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-Era simpathico, sim, senhor, não posso negar. Ficámos tão amigos que, ao chegar, elle foi morar comnosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochichos, as phrases, as cartas anonimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa por certas dificuldades. Elle sahiu, mas eu sabia que a Adelia lhe falava. Passaram-se mezes nessa tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas. Certo dia passei pelo José na rua e elle riu. Em casa puz Adelia em confissão, e ella disse : «<< E' mesmo, fizeste bem em pôr esse homem na rua. Andava-me tentando e foi tão ingrato que nem se despediu da gente direito. » De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e, afinal, em casa. Foi então que eu fiquei desatinado.

Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenario, o amor doloroso, o amor liliput desse menage de crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim tragico, hontem creaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condemnados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno insistiu.

- Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. S. para ver si entro como servente. Não quero estar no cubiculo com aquella gente.

Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, com um sorriso alvar a iluminarlhe a cara. Era a Herculana, a autora de um crime celebre. Matára o amante emquanto este dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e tres annos. E por que foi?

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-

Ora, nós brigámos. Eu gostava delle. Nós brigámos. Um dia, elle me disse uma porção de nomes. Eu fiquei calada, mas quando o vi deitado, com o pescoço á mostra, roncando, parece que o diabo me tentou. E fui então, com a faca...

Aproximei-me, e bem perto, quasi murmurando as palavras :

Diga: era capaz de fazer o mesmo outra vez, de abrir o pescoço do pobre rapaz, de acender as velas, de cantar? diga: era?

Ella riu como uma féra boceja, e disse num arranco de todo o ser:

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Que estranha psichologia a dessas flores magnificas do jardim do crime! Que poderoso transformador o amor! Bem dizia Tennyson ao evocal-o: Thou madest Life, in man and brute, thou madest Death... Eu começara a minha visita á beira do desespero, na purpura de uma moita de lyrios. vermelhos.

Com os corações em sangue, vi uma colecção

de assassinos, desde um velho lamentavel até uma criança honesta, postos fóra da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher, que os poetas levam a cantar, Venus inconsciente e perversa, Lilith, lendaria, surgia nessa ruina, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e no gesto de cada uma das victimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras. Oh! esses seres, que Schopenhauer denominava animaes de cabellos compridos e idéas curtas, que formidavel obra de destruição cometem! São a torrente a que ninguem póde resistir, a força dominadora da maldade, os Molochs da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos deuses, devem, para que a Harmonia as guie, levantar nas cidades um altar votivo onde os adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs, á ira de Venus sanguisedenta......

Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, gracil e airosa, com um rico vestido preto, caminhou pela galeria, olhando altivamente os presos, uma mulher cuja fronte pura parecia a pura fronte da inocencia.

O guarda curvou-se :

O Dr. Saturnino e a esposa...

Eu vira o ultimo crime de amor da Detenção.

A galeria superior

A galeria superior é dividida por um tapume, com portas de espaço a espaço para o livre transito dos guardas. Os presos não podem ver os cubiculos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os muros brancos e a divisão de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilancia diminue, falam de cubiculo para cubiculo, atiram por cima do tapume jornaes, cartas, recordações.

Estão actualmente na galeria duzentos e trinta e oito detentos. A aglomeração torna-os hostis. Ha confabulações de odio, murmurios de raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadissimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguem do primeiro cubiculo para que o saibam no ultimo. E então surgem todos, agar

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