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Somno calmo

Os delegados de policia são quando querem uns homens amaveis. Esses cavalheiros chegam mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do tragico horror que a miseria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sordidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:

Quer vir comigo visitar esses circulos in

fernaes?

Não sei si o delegado quiz dar-me apenas a nota mundana de visitar a miseria, ou si realmente, como Virgilio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos circulos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde tambem visitara as hospedarias de má fama e que

Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingenuos como tendo acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.

Era tudo quanto ha de mais literario e de mais batido. Nas peças francezas ha dez annos já aparece o jornalista que conduz a gente chic aos logares macabros; em Pariz, os reporters do « Journal » andam acompahados de um apache authentico. Eu repetia apenas um gesto que era quasi uma lei. Aceitei.

A' hora da noite quando cheguei á delegacia, a autoridade ordenára uma caça aos « pivettes », pobres garotos sem tecto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um adido de legação, tagarela e ingenuo.

O bacharel estava comovido. O adido assegurava que a miseria só na Europa porque a miseria é proporcional á civilisação. Ambos de casaca davam ao réles interior do posto um aspecto estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um « maître hôtel » o cardapio das nossas sensações. Afinal ergueu a bengala.

Em marcha!

Descemos todos, acompanhados de um cabo de policia e de dois agentes secretos - um dos quaes zanaga, com o rosto grosso de calabrez. E' perigoso entrar só nos covis horrendos, nos tragicos asylos da miseria. Iamos caminhando pela rua da Misericordia, hesitantes ainda diante das lanternas com vidros vermelhos. A's esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos,

estreitos em que a rua parece vasar a sua imundicie, por aquella rede de becos, viamos outras lanternas em fórma de foice, alumiando portas equivocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de tres, negras, fechadas, hermeticamente fechadas, pegadas uma á outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os nossos passos resoavam num desencontro nos lagedos quebrados. A rua, mal iluminada, tinha candieiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de uns fócos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os predios antigos pareciam ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas. De repente uma porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatario.

Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam cafagestes de bombacha branca, gingando, e constantemente o monotono apito do guarda noturno trilava, corria como um arrepio na arteria do susto, para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu aspero trilo. No alto,o céo misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade parecia escorrer do infinito.

Ha muitos desses covis espalhados pela cidade? indagou o advogado, abotoando o mac-farlane.

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Em todas as zonas, meu caro.

- Em cinco noites, visitando-os depressa, informou o agente, v. s. não dá cabo d'elles. E' por aqui, pela Gamboa, nas ruas centraes, nos bairros

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pobres. Só na Cidade Nova, que quantidade! Isso não contando com as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas, e não querendo falar das hospedarias só de gatunos, os «<zungas ».

<< Zungas »? fez o adido de legação, curioso. -As hospedarias baratas têm esse nome... Dorme-se até por cem réis. Saiba v. s. que a vidinha dava para uma historia.

Mas debaixo de uma das foices de luz, o delegado parára. Estacámos tambem.

O soldado bateu á porta com a mão espalmada. Houve um longo silencio. O soldado tornou a bater. De dentro então uma vóz somnolenta indagou : Quem é?

-Abra! E' a policia! Abra!

O silencio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala á porta.

Abra já! E' o dr. delegado! Abra já!

A porta abriu-se. Barafustámos na meia luz de um corredor com areia no soalho. O homem que viera abrir, corpulento, de camisa de meia, esfregou os olhos, deu força ao bico de gaz, encostouse á mesa forrada de jornaes, onde se alinhavam castiçaes.

E' o proprietario? indagou e delegado.

Saiba v. s. que não. Sou o encarregado.
Muita gente?

- Não ha mais logares.

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O livro é uma formalidade comica. A autoridade virou-lhe as paginas, rapido, emquanto os secretas descançavam as bengalas. O máo cheiro era intenso.

Mostre-nos isso! fez a autoridade, minutos

depois.

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Não ha acusação contra a casa, ha sr. doutor? - Não sei, ande.

O encarregado, tremulo, seguiu á frente. erguendo o castiçal. Abriu uma porta de ferro, fechou-a de novo, após a nossa passagem. E começámos a ver o rez-do-chão, salas com camas enfileiradas como nos quarteis, tarimbas com lençóes encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando, marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbuda. Uns cobriam-se até ao pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nús.

A mando da autoridade superior, os agentes chegavam a véla bem perto das caras, passavam a luz por baixo das camas, sacudiam os homens do pesado dormir. Não havia surpreza. Os pobres entes acordavam e respondiam, quasi a roncar outra vez, a razão por que estavam ali, lamentavelmente. O bacharel estava varado, o adido tinha um ar desprendido. Não tivesse elle visitado a miseria de Londres e principalmente a de Paris! O delegado, entretanto, gosava aquelle espectaculo.

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Trepámos todos por uma escada ingreme. O mão cheiro augmentava. Parecia que o ar rareava, e, parando um instante, ouvimos a respiração de todo aquelle mundo como o afastado resfolegar de uma grande machina. Era a seção dos quartos reservados e a sala das esteiras. Os quartos estreitos, asphixiantes, com camas largas antigas e lençoes

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