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Os trabalhadores de estiva

A's 5 da manhã ouvia-se um grito de machina rasgando o ar. Já o cáes, na claridade palida da madrugada, regorgitava num vai-e-vem de carregadores, catraeiros, homens de bote e vagabundos mal dormidos á beira dos kiosques. Abriam-se de vagar os botequins ainda com os bicos de gaz acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com becejos largos. Das ruas que vasavam na calçada rebentada do cáes, afluia gente, sem cessar, gente que surgia do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e parava á beira da grande azafama. Para o cáes da alfandega, ao lado, um grupo de ociosos olhava através as frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado aos humbraes de uma porta, lia, de oculos, o jor

nal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se na frialdade daquelle acordar, emquanto dos botes polichromicos homens de camisa de meia ofereciam, aos berros, um passeiosinho pela bahia. Na curva do horisonte o sol de maio punha manchas sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lirio, no céo palido.

Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquella confusão, via-os vir chegando a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a beira do cáes ficou coalhada. Durante a ultima grève, um delegado de policia dissera-me:

- São creaturas ferozes! Nem a tiro...

Eu via, porém, essas phisionomias resignadas á luz do sol e ellas me impressionavam de maneira bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos palidos — de um palido embaciado como si lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim, encolhidos, com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo relevo de desilusão, uma frisa de angustia.

Acerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão : Posso ir com vocês, para vêr?

Elle estendeu tambem a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as phalanges recurvas e a palma callosa e partida.

Porque não? Vai ver apenas o trabalho, fez

com amarga voz.

E quedou-se, outra vez, fumando.

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Entre os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei tambem. Acostumados, indiferentes á travessia, elles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava bahia. Todo um mundo de embarcações movia-se, coalhava o mar, riscava a superficie das ondas; lanchas oficiaes em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas, saveiros, rebocadores. Passámos perto de uma chata parada e inteiramente coberta de oleados. Um homem, no alto, estirou o braço, saudando.

Quem é aquelle ?

E' o José. E' chateiro-vigia. Passou todo o dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os ladrões são muitos. Então, fica um responsavel por tudo, toda a noite, sem dormir, e ganha seis mil réis. A's vezes, os ladrões atacam os vigias acordados e o homem, só, tem que se defender a revólver.

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Civilisado, tive este commentario frio :

Deve estar com somno, o José.

Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e oito filhos é preciso trabalhar. Ah! meu senhor, ha homens, por este mar afóra cujos filhos de seis mezes ainda os não conhecem. Sahem de madrugada de casa. O José está á espera que a alfandega tire o termo da carga, que não é estrangeira...

Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passavamos entre as lanchas. Ao longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céo e o

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cáes dos Mineiros já se perdia distante na nevoa vaga. Mas nós avistavamos um outro cáes com um armazem ao fundo. A' beira desse caés, saveiros enormes esperavam mercadoria; e, em cima, formando um circulo ininterrupto, homens de braços nús sahiam a correr de dentro da casa, atira vam o saco no saveiro, davam a volta á disparada, tornavam a sahir a galope com outro saco, sem cessar, continuos como a correia de uma grande machina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia contar. A cara escorrendo suor, os pobres surgiam do armazem como flechas, como flechas voltavam. Um clamor subia aos céos aprégoando o serviço :

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Um, dous, tres, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!

E a ronda continuava diabolica.

Aquella gente não cança?

Qual! trabalham assim horas a fio. Cada saco daquelles tem sessenta kilos e para transportal-o ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos dão só 30 réis, mas, assim mesmo, ha quem tire dezeseis mil réis por dia.

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O trabalho da estiva é complexo, variado; ha a estiva da aguardente, do bacalhão, dos cereaes, do algodão; cada uma tem os seus servidores, homens ha que só servem a certas e determinadas estivas, sendo por isso apontados.

- E' muito, fiz.

e

Passam dias, porém, sem ter trabalho e imagine quantas corridas são necessarias para ganhar a quantia fabulosa...

A lancha fizera-se ao largo. Caminhavamos para o poço onde o navio que devia sahir naquella noite fundeava, todo de branco. Era o começo do dia. A bordo ficou um terno de homens, e eu com elles. O terno divide-se assim um no guincho, quatro na embarcação, oito no porão e quatro no convez. Isso quando a carga é seca. Carregava café o vapor.

Logo que o saveiro atracou, elles treparam pelas escadas, rapidos; oito homens desapareceram na fauce aberta do porão, despiram-se, emquanto os outros rodeavam o guincho e as correntes de ferro começavam a ir e vir do porão para o saveiro, do saveiro para o porão, carregadas de sacas de café. Era regular, mathematico, a oscilação de um lento e formidavel relogio.

Aquelles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da machina; agiam inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam arrancado as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não falavam, tinham palavras inuteis. Quando a ruma estava feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquillo tinha que ser até ás 5 da tarde!

não

Desci ao porão. Uma atmosphera de caldeira sufocava. Era as correntes cahirem do braço de ferro um dos oito homens precipitava-se, alargava-as, os outros puxavam os sacos.

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De novo havia um rolar de ferros no convéz, as correntes subiam emquanto elles arrastavam os sacos. Do alto a claridade cahia fazendo uma

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