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Nós entramos como fornecedores de opio. Você veiu de Londres, tem um kilo, cerca de 600 grammas de opio de Bombay. Eu levo as amostras.

Caminhavamos pela rua da Misericordia áquella hora cheia de um movimento febril, nos corredores das hospedarias, á porta dos botequins, nas furnas das estalagens, á entrada dos velhos predios em ruinas.

O meu amigo dobrou uma esquina. Estavamos no beco dos Ferreiros, uma ruéla de cinco palmos de largura, com casas de dous andares, velhas e a cahir. A população desse beco mora em magótes em cada quarto e pendura a roupa lavada em bambús nos janelas, de modo que a gente tem a perene impressão de chitas festivas a flamular no alto. Ha portas de hospedarias sempre fechadas, linhas de fachadas tombando, e a miseria besunta de sujo e de gordura as antigas pinturas. Um cheiro nauseabundo paira nessa guêla desconhecida.

O meu amigo pára no n. 19, uma rótula, bate. Ha uma complicação de vozes no interior, e, passados instantes, ouve-se alguem gritar :

Que quer?

João, João está ahi?

João e Affonso são dous nomes habituaes entre os chins occidentalisados.

dade.

João não mora mais...

Venha abrir, brada o meu guia com autori

Imediatamente a rotula descerra-se e aparece, como tapando a fenda, uma figura amarela, côr

de gema de ovo batida, com um riso idiota na face, um riso de pavor que lhe deixa ver a dentuça suja e negra.

Que quer, senhor?

Tomamos um ar de bonhomia e falando como a querer enterrar as palavras naquelle craneo já trabucado.

Chego de Londres, com um kilo de opio, bom opio.

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Os olhos do celeste arregalam-se amarelos, na amarelidão da face.

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Dinheiro, não tem dinheiro.

Desconfiará elle de nós, não acreditará nas nossas palavras? O mesmo sorriso de medo lhe escancara a boca e lá dentro ha cochichos, vozes lividas.... O meu amigo bate-lhe no hombro.

Deixa ver a casa.

Elle recúa tremulo, agarrando a rótula com as duas mãos, dispara para dentro um fluxo cuspinhado de palavrinhas rapidas. Outras palavrinhas em tonalidades exquisitas respondem como pizzicatti de instrumentos de madeira, e a cara aparece com o sorriso emplastrado:

- Póde entrar, meu senhor...

Entrámos de esguela, e logo a rótula se fecha num quadro inédito. O n° 19 do beco dos Ferreiros é a visão oriental das lobregas bodegas de Shanghai.

Ha uma vasta sala estreita e comprida, inteiramente em tréva. A atmosphera pesada, oleosa, quasi suffoca. Dous renques de mesas, com as cabeceiras colladas ás paredes, estendem-se até ao fundo cobertas de esteirinhas. Em cada uma dessas mesas, do lado esquerdo, tremeluz a chama de uma candeia de azeite ou de alcool.

A custo, os nossos olhos acostumam-se á escuridão, acompanham a candelaria de luzes até ao fim, até uma alta parede encardida, e descobrem em cada mesa um cachimbo grande e um corpo amarelo, nú da cintura para cima, corpo que se levanta assustado, contorcionando os braços molles. Ha chins magros, chins gordos, de cabello branco, de caras despeladas, chins trigueiros, com a pele côr de manga, chins côr de óca, chins com a amarelidão da cera nos cirios.

As lampadas tremem, esticam-se na ancia de queimar o narcotico mortal. Ao fundo um velho idióta, com as pernas cruzadas em torno de um balde, atira com dous pausinhos arroz á boca. O ambiente tem um cheiro inenarravel, os corpos movem-se como as larvas de um pezadelo, e essas quinze caras estupidas, arrancadas ao balsamo que lhes cicatrisa a alma, olham-nos com o susto covarde de Coolies espancados. E todos murmuram medrosamente, com os pés nús, as mãos sujas:

mal!

Não tem dinheiro... não tem dinheiro.. faz

Ha um mysterio de explorações e de horrores nesse pavor dos pobres celestes. O meu amigo

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interroga um que parece ter vinte e parece ter sessenta annos, a cara cheia de pregas, como papel de arroz machucado.

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-

Como se chama você?

Tchang... Affonso.

Quanto póde fumar de opio?

Só fuma em casa... um bocadinho só... faz mal! Quanto póde fumar? Duzentas grammas, pouquinho... Não tem dinheiro.

Sinto nauseas e ao mesmo tempo uma nevrose de crime. A tréva da sala torna-se livida, com tons azulados. Ha na escuridão uma nuvem de fumo e as bolinhas pardas, queimadas á chama das candeias, põem uma tontura na furna, dão-me a imperiosa vontade de apertar todos aquelles pescoços nús e exangues, pescoços viscosos de cadaver onde o veneno gota a gota dissora.

E as caras continuam emplastradas pelo mesmo sorriso de susto e de suplica, multiplicado em quinze beiços amarellos, em quinze dentaduras nojentas, em quinze olhos de tormento!

Senhor, póde ir, póde ir? Nós vamos deitar: póde ir? supplica Tchang.

Arrasto o guia, fujo ao horror do quadro. A rotula fecha-se sem rumor. Estamos outra vez num beco infecto de cidades occidental. Os chins pelas persianas espiam-nos. O meu amigo consulta o relogio.

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Este é o primeiro quadro, o começo. Os chins preparam-se para a intoxicação. Nenhum delles tinha uma hora de cachimbo. Agora, porém, em outros logares devem ter chegado ao embruteci

mento, á excitação e ao sonho. Tenho duas casas no meu booknotes, uma na rua da Misericordia, onde os celestes se espancam, jogando o monte com os beiços rubros de mastigar folhas de bethel, e á rua D. Manuel n° 72, onde as fumeries tomam proporções infernaes.

Ouço com assombro, duvidando intimamente desse fervilhar de vicio, de ninguem ainda suspeitado. Mas acompanho-o.

A rua D. Manuel parece a rua de um bairro afastado. O Necroterio, com um capinzal cercado de arame, por traz do qual os ciganos confabulam, tem um ar de suburbio. Parece que se chegou, nas pedras irregulares do máo calçamento, olhando os pardieiros seculares, ao fim da cidade. Nas esquinas, onde larapios, de lenço no pescoço e andar gingante, estragam o tempo com rameiras de galho de arruda na carapinha, vêm-se pequenas ruas, nascidas dos socalcos do Castelo, estreitas e sem luz. A noite, na opala do crepusculo, vai apagando em tréva o velho casaredo.

E' aqui.

072 é uma casa em ruina, estridentemente caiada, pendendo para o lado. Tem dous pavimentos os degráos gastos do primeiro, uns degrãos quasi obliquos, caminhámos por um corredor em que o soalho balança e range, vamos até uma especie de caverna fedorenta, donde um italiano fazedor de bolas mastiga explicações entre duas crianças que parecem fétos sahidos de frascos de alcool. Voltámos á primeira porta, junto á escada, entrámos num quarto forrado immoralmente com

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