Feito este trabalho desfizemos a oitava. fazendo a construcção grammatical. virgulando-a ou accentoando-a, conforme a edição que nos pareceu mais rasoavel ou como o pareceu á nossa propria rasão. Nos logares duvidosos consultámos tambem como os interpretaram, alem dos commentadores, alguns traductores. A edição que seguimos é a segunda de 1572, porque nos pareceu de rasão, havendo duas edições do mesmo anno, em vida do seu auctor, seguir a que se julga segunda, que em alguns pontos nos pareceu preferivel, acontecendo porém o contrario em outros, que estão melhorados na primeira, o que dá bem a conhecer, alem da confrontação a que procedemos, um trabalho minucioso feito n'este sentido, que nos parece da letra do erudito bispo de Vizeu D. Francisco Alexandre Lobo. Desejariamos seguir fielmente a pontuação da edição que escolhemos, ou a da de 1613, commentada por Manuel Correia amigo de Camões, que muitas vezes ouviria recitar ao poeta o seu poema, porém viemos no conhecimento de que o não podiamos fazer, porque em muitas partes ficaria este confuso, como se demonstra das seguintes estancias, que extrahimos das tres edições de 1572 (1.a), 1572 (2.a), e da de 1613, o que acontece ainda em muitos outros logares. Não quiz ficar nos Reinos occioso, (1.a Edição, Cant. IV, Est. 58) Em quanto isto se passa, na formosa Ja la da banda do Austro, e do Oriente, (2.a Edição, Cant. I, Est. 42) Mas o leal vassallo conhecendo, De Egas Moniz: mas não consente o peito Do moço illustre, a outrem ser sujeito. (Edição de 1613, por Manuel Correia.-Cant. III, Est. 36) Mas dirá alguem, que se deveria seguir exactamente a mesma pontuação de uma obra publicada em vida de seu auctor. Sem duvida o fariamos se tivessemos a certeza que essa pontuação foi a sua, pois sobre os seus hombros pesaria a responsabilidade dos erros proprios. As oitavas porém supracitadas respondem cabalmente aos mais escrupulosos, porque não devemos suppor, que o Camões, homem de tantos conhecimentos, quizesse compor um galematias inintelligivel. Custa a crer, porém é uma triste verdade, que o poeta não presidiu, pelo menos em parte, á revisão do seu poema, e a explicação d'esta, á primeira vista, incuria é obvia. É necessario transportarmo-nos ao tempo em que elle escrevcu e imprimiu, e ao systema provavel pelo qual se regiam as officinas typographicas. O original, muitas vezes errado e com incurias, saía assim das mãos dos censores, por elles rubricado, para o officina, o qual depois de impresso, voltava ás estações competentes para ser conferido, Desde esse momento toda a responsabilidade recaía sobre a typographia, e por isso devia resultar uma repulsa ou contrariedade por parte do dono da officina, recusando-se a qualquer emenda, pela qual se viesse no conhecimento, quando o exem plar já impresso voltasse para ser conferido pelos censores, que se tinha transgredido o preceito da lei canonica e civil. No privilegio para a impressão da traducção castelhana de Garcez, que saíu no anno do 1591, encontramos mesmo noticia de que o revisor era ás vezes nomeado ex-officio, como se deprehende d'estas palavras: ou tragays fé en publica forma en como por corrector nombrado por nuestro mandado se vio e corregio la dicha impression por el original». E não admira que existissem estas meticulosas precauções até na parte, á primeira vista insignificante, da pontuação, quando se não ignora que uma virgula mal collocada dá logar a uma heresia. A outras poeticas, grammaticaes, e até historicas, deu origem a mal seguida pontuação das edições referidas. motivo pelo qual nos abalançámos a substitui-la por outra, ao que nos parece mais correcta. Lembrou-nos, para satisfazer a todos, apontar em nota os logares onde desprezámos a pontuação antiga, porém isso nos dobraria quasi o texto do original, e sem proveito. Temos em nosso favor o exemplo sem exclusão seguido com mais liberdade por todos os editores anteriores, o bom senso, e a consciencia que nos diz que não fazemos pequeno serviço á intelligencia do poema. Cingimo-nos comtudo quanto foi possivel á pontuação da edição que escolhemos, abordoando-nos não pou cas vezes áquella que nos pareceu que melhor poderia interpretar o pensamento do auctor, apontando, quando o logar é de mais importancia, onde está errado e a emenda, accusando a fonte d'onde este dimana. No meio da anarchia orthographica que encontrámos nas duas primeiras edições de 1572, ubi nullus ordo, não duvidámos, seguindo o exemplo dos Scyllas antigos e modernos, arvorar-nos em dictador, mas dictador manso. Não degolámos nem fuzilámos a torto e a direito: uniformisámos o que na mesma edição era inconstante e variado, seguindo uma orthographia regular e conforme ao gosto do leitor e mais affinada á musica da poesia, evitando as vogaes dobradas, abreviaturas, e outras pequenas liberdades, conservando comtudo outros vocabulos orthographados de maneira que, sem prejudicar a euphonia, conservem a ancianidade e sabor antigo do tempo em que foi escripto o poema. Com esta advertencia julgamos que ficarão satisfeitos os mais escrupulosos, e os leitores mais fanaticos poderão ler o poema debaixo de uma fórma mais agradavel e euphonica, sem que se tenha sacrificado em cousa alguma essencial a sua genuinidade primitiva, Reunimos as estancias desprezadas e variantes dos dois manuscriptos encontrados por Manuel de Faria e Sousa e as do manuscripto de Luiz Franco, sentindo que as d'este abranjam sómente o primeiro canto, porque eram feitas por um amigo de Camões, e provavelmente sobre o seu original. Em logar dos argumentos em verso que precedem algumas edições dos Lusiadas, attribuidos a João Franco Barreto, preferimos dar um argumento em prosa, com referencia ás estancias, que indique as differentes partes de que se compõe o poema. Camões ou por não parecer adulador, ou para conservar a imparcialidade, não incluiu nos Lusiadas os vice-reis ou governadores que tiveram as redeas do estado durante o tempo que militou na India, postoque a D. Francisco Coutinho, conde de Redondo, e a D. Constantino de Bragança dirigiu poesias lyricas designadamente, e a todos os outros seus compatriotas illustres incluiu n'estes versos Estes e out ros varões por varias partes Dignos todos de fama, e maravilha, Virão lograr os gostos d'esta ilha. Outros pretendem que as verdadeiras ou suppostas offensas recebidas de Francisco Barreto fossem a causa d'esta omissão. Nós fazemos melhor conceito do caracter do poeta; aquelle que levantou a sua voz contra o grande Affonso de Albuquerque, depois de o haver exaltado, pelo rigor de disciplina exercido na pessoa do soldado Ruy Dias, não teria duvida de fazer soar as suas queixas contra a prepotencia praticada para com elle, tendo ao mesmo tempo a imparcialidade de não deprimir o caracter e merecimento de um homem a quem Carlos V lançava o tosão de oiro. Seja porém qual fosse o motivo, o certo é que nos não parece justo que um homem como este, um D. Luiz de Athaide e outros ficassem á porta do templo da gloria portugueza, e assim nos lembrou dar-lhes ali entrada da maneira que nos era possivel com as estancias de um poeta tambem illustre, Gabriel Pereira de Castro, ficando assim completado o elogio dos heroes da India até à funesta batalha de Alcacerquibir, epocha que coincide com a morte do homem que ainda sustentou em seus hombros todo o peso do nosso poder na India, que com a sua morte começou a baquear; fallamos do grande D. Luiz de Athaide. |