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LXXXI

Que geração tão dura ha hi de gente,
Que barbaro costume e usança fea,
Que não vedem os portos tamsomente,
Mas inda o hospicio da deserta area?
Que má tenção, que peito em nós se sente,
Que de tão pouca gente se arrecea,
Que com laços armados tão fingidos,
Nos ordenassem ver-nos destruidos?

LXXXII

Mas tu, em quem mui certo confiâmos
Achar-se mais verdade, ó Rei benino,
E aquella certa ajuda em ti esperamos,
Que teve o perdido Ithaco em Alcino;
A teu porto seguros navegâmos,
Conduzidos do Interprete divino:

Que pois a ti nos manda, está mui claro,
Que és de peito sincero, humano e raro.

LXXXIII

E não cuides, ó Rei, que não sahisse
O nosso Capitão esclarecido

A ver-te, ou a servir-te, porque visse,
Ou suspeitasse em ti peito fingido:
Mas saberás que o fez, porque cumprisse
O regimento em tudo obedecido

De seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando a frota em nenhum porto ou praia.

LXXXIV

E porque he de vassallos o exercicio,
Que os membros tem regidos da cabeça,
Não quererás, pois tens de Rei o officio,
Que ninguem a seu Rei desobedeça;
Mas as mercês e o grande beneficio,
Que ora acha em ti, promette que conheça,
Em tudo aquillo que elle e os seus poderem,
Em quanto os rios para o mar correrem.

LXXXV

Assi dizia; e todos juntamente,
Huns com outros em pratica fallando,
Louvavam muito o estomago da gente,
Que tantos ceos e mares vai passando:
E o Rei illustre, o peito obediente
Dos Portuguezes na alma imaginando,
Tinha por valor grande e mui subido
O do Rei, que he tão longe obedecido.

LXXXVI

E com risonha vista e ledo aspeito,
Responde ao embaixador, que tanto estima:
Toda a suspeita má tirai do peito,
Nenhum frio temor em vós se imprima:
Que vosso preço e obras são de geito,
Para vos ter o mundo em muita estima;
E quem vos fez molesto tratamento,
Não pode ter subido pensamento.

LXXXVII

De não sabir em terra toda a gente,
Por observar a usada preeminencia,
Ainda que me peze estranhamente,
Em muito tenho a muita obediencia:
Mas se lho o regimento não consente,
Nem eu consentirei, que a excellencia
De peitos tão leaes em si desfaça,
Só porque a meu desejo satisfaça.

LXXXVIII

Porém, como a luz crastina chegada
Ao mundo for, em minhas almadias
Eu irei visitar a forte armada,
Que ver tanto desejo ha tantos dias:
E se vier do mar desbaratada,
Do furioso vento, e longas vias,
Aqui terá, de limpos pensamentos,
Piloto, munições e mantimentos.

LXXXIX

Isto disse; e nas aguas se escondia
O filho de Latona; e o mensageiro
Co'a embaixada alegre se partia
Para a frota no seu batel ligeiro.
Enchem-se os peitos todos de alegria,
Por terem o remedio verdadeiro
Para acharem a terra, que buscavam;
E assi ledos a noite festejavam.

XC

Não faltam ali os raios de artificio,
Os tremulos cometas imitando:
Fazem os bombardeiros seu officio,
O ceo, a terra e as ondas atroando.
Mostra-se dos Cyclópas o exercicio
Nas bombas que de fogo estão queimando:
Outros com vozes, com que o ceo feriam,
Instrumentos altisonos tangiam.

XCI

Respondem-lhe da terra juntamente,
Co'o raio volteando, com zonido;
Anda em gyros no ar a roda ardente;
Estoura o pó sulphureo escondido.
A grita se alevanta ao ceo, da gente;
O mar se via em fogos accendido,
E não menos a terra: e assi festeja
Hum ao outro, á maneira de peleja.

XCII

Mas já o ceo inquieto revolvendo,
As gentes incitava a seu trabalho:
E já a mãe de Memnon a luz trazendo,
Ao somno longo punha certo atalho;
Hiam-se as sombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra em frio orvalho,
Quando o Rei melindano se embarcava
· A ver a frota, que no mar estava.

XCIII

Viam-se em derredor ferver as praias
Da gente, que a ver só concorre leda;
Luzem da fina purpura as cabaias,
Lustram os pannos da tecida seda:
Em lugar de guerreiras azagaias,
E do arco, que os cornos arremeda
Da Lua, trazem ramos de palmeira,
Dos

que vencem, coroa verdadeira.

XCIV

Hum batel grande e largo, que toldado
Vinha de sedas de diversas cores,
Traz o Rei de Melinde, acompanhado
De nobres de seu reino e de senhores.
Vem de ricos vestidos adornado,
Segundo seus costumes e primores;
Na cabeça huma fota guarnecida,
De ouro e de seda, e de algodão tecida.

XCV

Cabaia de damasco rico e dino,
Da Tyria côr, entre elles estimada;
Hum collar ao pescoço, de ouro fino,
Onde a materia da obra he superada:
C'hum resplandor reluze adamantino,
Na cinta, a rica adaga bem lavrada:
Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,
Cobrem ouro e aljofar ao velludo.

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