Que geração tão dura ha hi de gente, Que barbaro costume e usança fea, Que não vedem os portos tamsomente, Mas inda o hospicio da deserta area? Que má tenção, que peito em nós se sente, Que de tão pouca gente se arrecea, Que com laços armados tão fingidos, Nos ordenassem ver-nos destruidos?
Mas tu, em quem mui certo confiâmos Achar-se mais verdade, ó Rei benino, E aquella certa ajuda em ti esperamos, Que teve o perdido Ithaco em Alcino; A teu porto seguros navegâmos, Conduzidos do Interprete divino:
Que pois a ti nos manda, está mui claro, Que és de peito sincero, humano e raro.
E não cuides, ó Rei, que não sahisse O nosso Capitão esclarecido
A ver-te, ou a servir-te, porque visse, Ou suspeitasse em ti peito fingido: Mas saberás que o fez, porque cumprisse O regimento em tudo obedecido
De seu Rei, que lhe manda que não saia, Deixando a frota em nenhum porto ou praia.
E porque he de vassallos o exercicio, Que os membros tem regidos da cabeça, Não quererás, pois tens de Rei o officio, Que ninguem a seu Rei desobedeça; Mas as mercês e o grande beneficio, Que ora acha em ti, promette que conheça, Em tudo aquillo que elle e os seus poderem, Em quanto os rios para o mar correrem.
Assi dizia; e todos juntamente, Huns com outros em pratica fallando, Louvavam muito o estomago da gente, Que tantos ceos e mares vai passando: E o Rei illustre, o peito obediente Dos Portuguezes na alma imaginando, Tinha por valor grande e mui subido O do Rei, que he tão longe obedecido.
E com risonha vista e ledo aspeito, Responde ao embaixador, que tanto estima: Toda a suspeita má tirai do peito, Nenhum frio temor em vós se imprima: Que vosso preço e obras são de geito, Para vos ter o mundo em muita estima; E quem vos fez molesto tratamento, Não pode ter subido pensamento.
De não sabir em terra toda a gente, Por observar a usada preeminencia, Ainda que me peze estranhamente, Em muito tenho a muita obediencia: Mas se lho o regimento não consente, Nem eu consentirei, que a excellencia De peitos tão leaes em si desfaça, Só porque a meu desejo satisfaça.
Porém, como a luz crastina chegada Ao mundo for, em minhas almadias Eu irei visitar a forte armada, Que ver tanto desejo ha tantos dias: E se vier do mar desbaratada, Do furioso vento, e longas vias, Aqui terá, de limpos pensamentos, Piloto, munições e mantimentos.
Isto disse; e nas aguas se escondia O filho de Latona; e o mensageiro Co'a embaixada alegre se partia Para a frota no seu batel ligeiro. Enchem-se os peitos todos de alegria, Por terem o remedio verdadeiro Para acharem a terra, que buscavam; E assi ledos a noite festejavam.
Não faltam ali os raios de artificio, Os tremulos cometas imitando: Fazem os bombardeiros seu officio, O ceo, a terra e as ondas atroando. Mostra-se dos Cyclópas o exercicio Nas bombas que de fogo estão queimando: Outros com vozes, com que o ceo feriam, Instrumentos altisonos tangiam.
Respondem-lhe da terra juntamente, Co'o raio volteando, com zonido; Anda em gyros no ar a roda ardente; Estoura o pó sulphureo escondido. A grita se alevanta ao ceo, da gente; O mar se via em fogos accendido, E não menos a terra: e assi festeja Hum ao outro, á maneira de peleja.
Mas já o ceo inquieto revolvendo, As gentes incitava a seu trabalho: E já a mãe de Memnon a luz trazendo, Ao somno longo punha certo atalho; Hiam-se as sombras lentas desfazendo, Sobre as flores da terra em frio orvalho, Quando o Rei melindano se embarcava · A ver a frota, que no mar estava.
Viam-se em derredor ferver as praias Da gente, que a ver só concorre leda; Luzem da fina purpura as cabaias, Lustram os pannos da tecida seda: Em lugar de guerreiras azagaias, E do arco, que os cornos arremeda Da Lua, trazem ramos de palmeira, Dos
que vencem, coroa verdadeira.
Hum batel grande e largo, que toldado Vinha de sedas de diversas cores, Traz o Rei de Melinde, acompanhado De nobres de seu reino e de senhores. Vem de ricos vestidos adornado, Segundo seus costumes e primores; Na cabeça huma fota guarnecida, De ouro e de seda, e de algodão tecida.
Cabaia de damasco rico e dino, Da Tyria côr, entre elles estimada; Hum collar ao pescoço, de ouro fino, Onde a materia da obra he superada: C'hum resplandor reluze adamantino, Na cinta, a rica adaga bem lavrada: Nas alparcas dos pés, em fim de tudo, Cobrem ouro e aljofar ao velludo.
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