Os crespos fios d'ouro se esparziam Pelo collo, que a neve escurecia:
Andando, as lacteas tetas lhe tremiam, Com quem amor brincava, e não se via: Da alva petrina flammas lhe sahiam, Onde o Menino as almas accendia: Pelas lisas columnas lhe trepavam Desejos, que como hera se enrolavam.
C'hum delgado sendal as partes cobre, De quem vergonha he natural reparo; Porém nem tudo esconde, nem descobre O veo, dos roxos lirios pouco avaro: Mas para que o desejo accenda e dobre, Lhẹ põe diante aquelle objecto raro. Já se sentem no Ceo, por toda a parte, Ciumes em Vulcano, amor em Marte.
E mostrando no angelico semblante, Co'o riso huma tristeza misturada, Como dama, que foi do incauto amante Em brincos amorosos maltratada,
Que se aqueixa, e se ri n'hum mesmo instante,
E se torna entre alegre magoada;
Desta arte a deosa, a quem nenhuma iguala,
Mais mimosa que triste ao Padre falla.
Sempre eu cuidei, ó-Padre poderoso,
Que para as cousas, que eu do peito amasse, Te achasse brando, affabil e amoroso,
Postoque a algum contrario lhe
pezasse: Mas pois que contra mi te vejo iroso, Sem que to merecesse, nem te errasse, Faça-se como Baccho determina; Assentarei em fim que fui mofina.
Este povo, que he meu, por quem derramo As lagrimas, que em vão cahidas vejo, Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, Sendo tu tanto contra meu desejo:
Por elle a ti rogando, choro e bramo, E contra minha dita cm fim pelejo. Ora pois, porque o amo he maltratado, Quero-lhe querer mal, será guardado.
Mas moura em fim nas mãos das brutas gentes, Que pois eu fui... E nisto, de mimosa, O rosto banha em lagrimas ardentes,
Como co'o orvalho fica a fresca rosa:
Calada hum pouco, como se entre os dentes Se lhe impedira a falla piedosa,
Torna a segui-la; e indo por diante,
Lhe atalha o poderoso e grão Tonante:
E destas brandas mostras commovido,
Que moveram de hum tigre o peito duro, Co'o vulto alegre, qual do ceo subido, Torna sereno e claro o ar escuro, As lagrimas lhe alimpa, e accendido Na face a beija, e abraça o collo puro; De modo que d'ali, se só se achara, Outro novo Cupido se gerara.
E co'o seu apertando o rosto amado, Que os soluços e lagrimas augmenta, Como menino da ama castigado,
Que quem no affaga, o choro lhe acrescenta, Por lhe pôr em socego o peito irado, Muitos casos futuros lhe apresenta; Dos fados as entranhas revolvendo, Desta maneira em fim lhe está dizendo:
Formosa filha minha, não temais Perigo algum nos vossos Lusitanos; Nem que ninguem commigo possa mais, Que esses chorosos olhos soberanos: Que eu vos prometto, filha, que vejais Esquecerem-se Gregos e Romanos, Pelos illustres feitos, que esta gente Ha de fazer nas partes do Oriente.
Que se o facundo Ulysses escapou De ser na Ogygia ilha eterno escravo; E se Antenor os seios penetrou Illyricos, e a fonte de Timavo; E se o piedoso Eneas navegou
De Scylla e de Charybdis o mar bravo; Os vossos, mores cousas attentando,
Novos mundos ao mundo irão mostrando.
Fortalezas, cidades e altos muros Por elles vereis, filha, edificados: Os Turcos bellacissimos e duros. Delles sempre vereis desbaratados: Os Reis da India, livres e seguros, Vereis ao Rei potente subjugados:
por elles, de tudo em fim senhores, Serão dadas na terra leis melhores.
Vereis este, que agora pressuroso Por tantos medos o Indo vai buscando, Tremer delle Neptuno, de medroso, Sem vento suas aguas encrespando. Oh caso nunca visto e milagroso,
Que trema e ferva o mar, em calma estando! Oh gente forte e de altos pensamentos,
Que tambem della hão medo os elementos!
Vereis a terra, que a agua lhe tolbia,
Que inda ha de ser hum porto mui decente, Em que vão descansar da longa via
As naos que navegarem do Occidente. Toda esta costa em fim, que agora ordia O mortifero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo Não poder resistir ao Luso horrendo.
E vereis o mar Roxo tão fanioso Tornar-se-lhe amarello de enfiado: Vereis de Ormuz o reino poderoso Duas vezes tomado e subjugado: Ali vereis o Mouro furioso
De suas mesmas settas traspassado; Que quem vai contra os vossos, claro veja, Que se resiste, contra si peleja.
Vereis a inexpugnabil Dio forte.
Que dous cercos terá, dos vossos sendo; Ali se mostrará seu preço e sorte, Feitos de armas grandissimos fazendo: Invejoso vereis o grão Mavorte Do peito Lusitano fero e horrendo. Do Mouro ali verão, que a voz extrema Do falso Mafamede ao Ceo blasfema.
« AnteriorContinuar » |