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XXI

Nos hombros de hum Tritão, com gesto acceso,

Vai a linda Dione furiosa;

Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão formosa:
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota bellicosa:
Repartem-se, e rodeam nesse instante.
As naos ligeiras, que hiam por diante.

XXII

Põe-se a deosa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de geito,
Que em vão assopra o vento, a vela inchando:
Põe no madeiro duro o brando peito,
Para detraz a forte nao forçando:
Outras em derredor levando-a estavam,

E da barra inimiga a desviavam.

XXIII

Quaes para a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande accommodado,
As forças exercitam, de inimigas
Do inimigo inverno congelado:
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
Taes andavam as nymphas estorvando

Á

gente Portugueza o fim nefando.

XXIV

Torna para detraz a nao forçada,
A pezar dos que leva, que gritando
Maream velas, ferve a gente irada,

O leme a hum bordo, e a outro atravessando:
O mestre astuto em vão da popa brada,
Vendo como diante ameaçando

Os estava hum maritimo penedo,

Que de quebrar-lhe a nao lhe mette medo.

XXV

A celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha:

O grande estrondo a Maura gente espanta,
Como se vissem horrida batalha:

Não sabem a razão de furia tanta;
Não sabem nesta pressa quem lhe valha;
Cuidam que seus enganos são sabidos,
E que hão de ser por isso aqui punidos.

XXVI

Ei-los subitamente se lançavam
A seus bateis veloces que traziam:
Outros em cima o mar alevantavam,
Saltando n'agua, a nado se acolhiam:
De hum bordo e d'outro subito saltavam,
Que o medo os compellia do que viam;
Que antes querem ao mar aventurar-se,
Que nas mãos inimigas entregar-se.

TOM. VI

XXVII

Assi como em selvatica alagoa
As rãas, no tempo antiguo Lycia gente,
Se sentem porventura vir pessoa,
Estando fóra da agua incautamente,
D'aqui e d'ali saltando, o charco soa,
Por fugir do perigo que se sente;
E acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós as cabeças na agua lhe

apparecem:

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Assi fogem os Mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naos guiara,
Crendo
que seu engano estava noto,
Tambem foge, saltando na agua amara.
Mas por não darem no penedo immoto,
Onde percam a vida doce e chara.
A ancora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto della amaina.

XXIX

Vendo o Gama, attentado, a estranheza
Dos Mouros, não cuidada, e juntamente
O piloto fugir-lhe com presteza,
Entende o que ordenava a bruta gente:
E vendo sem contraste, e sem braveza
Dos ventos, ou das aguas sem corrente,
Que a nao passar avante não podia,
Havendo-o por milagre, assi dizia:

XXX

Oh caso grande, estranho e não cuidado!
Oh milagre clarissimo e evidente!
Oh descoberto engano inopinado!.
Oh perfida, inimiga e falsa' gente!
Quem poderá do mal apparelhado
Livrar-se sem perigo sabiamente,
Se lá de cima a Guarda soberana
Não acudir á fraca força humana?

XXXI

Bem nos mostra a divina Providencia
Destes portos a pouca segurança:
Bem claro temos visto na apparencia,
Que era enganada a nossa confiança:
Mas pois saber humano, nem prudencia
Enganos tão fingidos não alcança,

Ó

De

tu, Guarda divina, tem cuidado

quem sem ti não pode ser guardado.

XXXII

E se te move tanto a piedade
Desta misera gente peregrina,
Que só por tua altissima bondade,
Da gente a salvas perfida e malina;
N'algum porto seguro de verdade
Conduzir-nos já agora determina;
Ou nos amostra a terra que buscamos,
Poís só por teu serviço navegamos.

XXXIII

Ouvio-lhe estas palavras piedosas
A formosa Dione; e commovida,
D'entre as nymphas se vai, que saudosas
Ficaram desta subita partida.

Já penetra as estrellas luminosas;
Já na terceira esphera recebida,
Avante passa; e lá no sexto ceo,
Para onde estava o Padre, se moveo.

XXXIV

E como hia affrontada do caminho,
Tão formosa no gesto se mostrava,
Que as estrellas, e o ceo, e o ar vizinho,
E tudo quanto a via, namorava.

Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Huns espiritos vivos inspirava,

Com

que os polos gelados accendia, E tornava de fogo a esphera fria.

XXXV

E por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e chara,
Se lh'apresenta assi, como ao Troiano,
Na selva Idea já se apresentara.

Se a vira o caçador, que o vulto humano
Perdeo, vendo Diana na agua clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.

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