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VI

Pergunta-lhe despois, se estão na terra
Christãos, como o piloto lhe dizia:
O mensageiro astuto, que não erra,

Lhe diz, que a mais da gente em Christo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita, e cauta phantasia:
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

VII

E de alguns que trazia condemnados
Por culpas, e por feitos vergonhosos,
Porque podessem ser aventurados
Em casos desta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Porque notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e porque vejam
Os Christãos, que só tanto ver desejam.

E

VIII

por estes ao Rei presentes manda,
Porque a boa vontade que mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda,
A qual bem ao contrario em tudo estava.
Já a companhia perfida e nefanda,
Das naos se despedia, e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.

IX

E despois que ao Rei apresentaram
Co'o recado os presentes que traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquillo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaram
De lhe mostrarem tudo o que pediam;
Que onde reina a malicia, está o receio,
Que a faz imaginar no peito alheio.

X

Mas aquelle, que sempre a mocidade
Tem no rosto perpetua, e foi nascido
De duas mãis; que ordia a falsidade,
Por ver o navegante destruido;
Estava n'huma casa da cidade,
Com rosto humano e habito fingido,
Mostrando-se Christão, e fabricava
Hum altar sumptuoso que adorava.

XI

Ali tinha em retrato affigurada
Do alto e Sancto Espirito a pintura,
A candida pombinha debuxada,
Sobre a unica phenix Virgem pura:
A companhia sancta está pintada
Dos doze, tão turvados na figura,
Como os que, só das linguas que cahiram
De fogo, varias linguas referiram.

XII

Aqui os dous companheiros conduzidos,
Onde com este engano Baccho estava,
Poem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquelle Deos, que o mundo governava.
Os cheiros excellentes produzidos
Na Panchaia odorifera queimava
O Thyoneo; e assi por derradeiro
O falso deos adora o verdadeiro.

XIII

Aqui foram de noite agasalhados
Com todo o bom e honesto tratamento
Os dous Christãos, não vendo que enganados
Os tinha o falso e sancto fingimento.
Mas assi como os raios espalhados

Do Sol foram no mundo, e n'hum momento
Appareceo no rubido horizonte

Da moça de Titão a roxa fronte:

XIV

Tornam da terra os Mouros co'o recado
Do Rei, para que entrassem, e comsigo
Os dous, que o Capitão tinha mandado,
A quem se o Rei mostrou sincero amigo:
E sendo o Portuguez certificado
De não haver receio de perigo,
E que gente de Christo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.

XV

Dizem-lhe os que mandou, que em terra viram Sacras aras, e sacerdote santo;

Que ali se agasalharam e dormiram,

Em quanto a luz cobrio o escuro manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão contentamento, e gosto tanto,
Que não podia certo haver suspeita
N'huma mostra tão clara e tão perfeita.

XVI

Com isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam;
Que levemente hum animo se fia
De mostras, que tão certas pareciam.
A nao da gente perfida se enchia,
Deixando a bordo os barcos que
Alegres vinham todos, porque crem,
Que a presa desejada certa tem.

traziam:

XVII

Na terra cautamente apparelhavam
Armas e munições, que como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Nelles ousadamente se subissem:
E nesta traïção determinavam,

Que os de Luso de todo destruissem;

E

que incautos pagassem, deste geito, O mal que em Moçambique tinham feito.

XVIII

As ancoras tenaces vão levando
Com a nautica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam para a barra abalizada.
Mas a linda Erycina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande, e tão secreta,
Voa do ceo ao mar como huma setta.

XIX

Convoca as alvas filhas de Nereo,
Com toda a mais cerulea companhia;
Que, porque no salgado mar nasceo,
Das aguas o poder lhe obedecia;
E propondo-lhe a causa a que desceo,
Com todos juntamente se partia,

Para estorvar, que a armada não chegasse
Aonde para sempre se acabasse.

XX

Já na agua erguendo vão com grande pressa,. Co'as argenteas caudas branca escuma:

Doto co'o peito corta, e atravessa

Com mais furor o mar do que

costuma.

Salta Nise, Nerine se arremessa

Por cima da agua crespa em força summa: Abrem caminho as ondas encurvadas,

De temor das Nereidas apressadas.

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