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Não foi pouco aprazivel a Velloso
Tratar-se esta materia, vigiando;

Que com quanto era duro e bellicoso,
Amor o tinha feito manso e brando.
Tão concertado vive este enganoso
Moço co'a natureza, que tratando
Os corações tão doce e brandamente,
Não deixa de ser forte quem o sente.

Contai (disse), senhor, contai de amores
As maravilhas sempre acontecidas,
Que ainda de seus fios cortadores
No peito trago abertas as feridas.
Concederam os mais vigiadores,
Que ali fossem de todos referidas
As historias, que já de amor passaram ;
E assi sua vigia começaram.

Disse então Leonardo: Não espere
Ninguem, que conte fabulas antigas:
Que quem alheias lagrimas refere,
Das proprias vive isento, e sem fadigas.
Porque, despois que amor co'os olhos fere,

Nunca por tão suaves inimigas,

Como a mi só no mundo tem ferido
Pyramo, nem o nadador de Abido.

Fortuna, que no mundo póde tanto,
Me deitou longe já da patria minha,
Onde tão longo tempo vivi, quanto
Bastou para perder hum bem que tinha.
Livre vivia então; mas não me espanto,
Senão que sendo livre, não sostinha
Deixar de ser captivo, que o cuidado,
Sem porque, tive sempre namorado.

Depois d'estas cinco, e da estancia LXXX, seguia-se a LXXXI com esta diffe

rença:

Divina Guarda, angelica, celeste,
Que o astrifero polo senhoreas;
Tu que a todo Israel refugio dėste
Por metade das aguas erythreas:
Se por mores perigos me trouxeste,
Que ao itacence Ulysses, ou a Eneas,
Passando os largos términos de Apolo,
Pelas furias de Tethys e de Eolo.

Ao fim d'este mesmo canto vi, depois da estancia xcIV, continuavam no primeiro manuscripto as seguintes sete :

Olhai como despois de hum grande medo,

Tão desejado bem logo se alcança;

Assi tambem detraz de estado ledo
Tristeza está, certissima mudança.
Quem quizesse alcançar este segredo
De não se ver nas cousas segurança,
Creio, se esquadrinha-lo bem quizesse,
Que em vez de saber mais, endoudecesse.

Não respondo a quem disse, que a Fortuna
Era em todas as cousas inconstante;
Que mandou Deos ao mundo por coluna
Deosa, que ora se abaixe, ora levante.
Opinião das gentes importuna

He ter, que o homem aos anjos similhante,
Por quem já Deos fez tanto, se pozesse
Nas mãos do leve caso, que o regesse.

Mas quem diz, que virtudes, ou peccados,
Sobem baixos, e abaixam os subidos;
Que me dirá se os mãos vir sublimados?
Que me dirá, se os bons vir abatidos?
Se alguem me diz, que nascem destinados,
Parece razão aspera aos ouvidos;
Que se eu nasci obrigado ao meu destino,

Que mais me val ser sancto, que malino?

Viram-se os Portuguezes em tormenta,
Que nenhum se lembrava já da vida;
Subitamente passa, e lhe apresenta
Venus a cousa delles mais querida.
Mas o Cabral, que o numero accrescenta
Dos naufragios, na costa desabrida,
A vida salva alegre, e logo perto

A perde, ou por destino, ou por acerto.

Se havia de perdê-la em breve instante,
O salva-la primeiro, que lhe val?
Fortuna ali, se he habil e prestante,

Porque não dava hum bem de traz de hum mal?
Bem dizia o philosopho elegante

Simónides, ficando em hum portal
Salvo, donde os amigos morrer vira,
Na sala arruinada, que cahira.

Oh poder da fortuna tão pesado,

Que tantos n'hum momento assi mataste!
Para que maior mal me tens guardado,
Se deste, que he tamanho, me guardaste?
Bem sabia que o ceo estava irado:
Não ha damno, que o seu furor abaste:
Nem fez hum mal tamanho, que não tenha
Outro muito maior, que logo venha.

Mui bem sei, que não falta quem me désse
Razões sutis, que o engenho lhe assegura;
Nem quem segundas causas resolvesse ;
Materias altas, que o juizo apura.
Eu lhe fico, que a todos respondesse,
Mas não o soffre a força da escriptura:
Respondo só, que a longa experiencia
Enleia muitas vezes a sciencia.

SEGUNDO MANUSCRIPTO

(Que fora de M. Correia Montenegro)

No canto vin, depois da estancia XXXII, havia as tres seguintes:

Este deu grão principio à sublimada
Illustrissima casa de Bragança,

Em estado e grandeza avantajada
A quantas o hespanhol imperio alcança.
Vês aquelle, que vai com forte armada
Cortando o Hesperio mar, e logo alcança
O valeroso intento, que pretende,

E a villa de Azamor combate e rende?

He o Duque Dom Gemes, derivado
Do tronco antiguo, e successor famoso,
Que o grande feito emprende, e acabado
A Portugal dá volta victorioso;
Deixando desta vez tão admirado

A todo o mundo, e o Mouro tão medroso,
Que inda atégora nunca ha despedido
O grão temor entonces concebido.

E se o famoso Duque mais avante
Não passa co'a catholica conquista,
Nos muros de Marrocos, e Trudante,
E outros logares mil á escala vista;
Não he por falta de animo constante,

Nem de esforço, e vontade prompta e lista;

Mas foi por não passar o limitado

Término, por seu rei assignalado.

Depois da estancia xxxv, neste mesmo canto vin, havia mais uma, como se

segue:

Achou-se nesta desigual batalha
Hum dos nossos de imigos rodeado;
Mas elle de valor, mais que de malha,
E militar esforço acompanhado,

Do primeiro o cavallo mata, e talha

O collo a seu senhor, com desusado

Golpe de espada; e passo a passo andando,

Os torvados contrarios vai deixando.

No canto x, depois da estancia LXXII, haviam dez na fórma que se seguem :

Verá-se, emfim, toda a India conjurada
Com bellico apparelho; varias gentes,
Chaul, Goa e Maláca ter cercada
Em hum tempo logares differentes.
Mas vê como Chaul quasi tomada,
O mar com suas ondas eminentes,
Vai soccorrer a gente Portugueza,
Que só de Deos espera já defeza.

Vês qual o Rei gentio presuroso
Arde, cerca, discorre, e anda listo,
Incitando o exercito espantoso
A destruir hum esquadrão de Christo?
Mas nota o ponto de honra generoso,
Em cerco, nem batalha nunca visto;
Os soldados fugindo do seguro,
Passar-se ao posto perigoso e duro.

Ali o prudentissimo Ataíde,
Confortado da ajuda soberana,
Onde a necessidade e tempo o pide,
Soccorrerá com força mais que humana.
Até que com seus damnos se despide
Do cru intento a gente vil, profana,
Que em batalhas, e encontros mil vencidos,
Virão a pedir paz arrependidos.

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