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LXIX

Porém disto, que o Mouro aqui notou,
E de tudo o que vio, com olho attento,
Hum odio certo na alma lhe ficou,
Huma vontade má de pensamento:
Nas mostras, e no gesto o não mostrou;
Mas com risonho, e ledo fingimento,
Trata-los brandamente determina,
Até que mostrar possa o que imagina.

LXX

Pilotos lhe pedia o Capitão,

Por quem podesse á India ser levado: Diz-lhe, que o largo premio levarão Do trabalho, que nisso for tomado. Promette-lhos o Mouro, com tenção De peito venenoso, e tão damnado, Que a morte, se podesse, neste dia Em lugar de pilotos lhe daria.

LXXI

Tamanho o odio foi, e a má vontade,
Que aos estrangeiros subito tomou,
Sabendo ser sequaces da verdade,
Que o filho de David nos ensinou.
Oh segredos daquella Eternidade,
A quem juizo algum não alcançou!
Que nunca falte hum perfido inimigo
Áquelles de quem foste tanto amigo!

LXXII

Partio-se nisto em fim co'a companhia,
Das naos o falso Mouro despedido,
Com enganosa e grande cortezia,
Com gesto ledo a todos, e fingido.
Cortaram os bateis a curta via
Das aguas de Neptuno, e recebido
Na terra, do obsequente ajuntamento,
Se foi o Mouro ao cognito aposento.

LXXIII

Do claro assento ethereo, o grão Thebano,
Que da paternal coxa foi nascido,
Olhando o ajuntamento Lusitano
Ao Mouro ser molesto, e aborrecido,
No pensamento cuida hum falso engano,
Com que seja de todo destruido:

E em quanto isto só na alma imaginava,
Comsigo estas palavras praticava.

LXXIV

Está do Fado já determinado,
Que tamanhas victorias, tão famosas,
Hajam os Portuguezes alcançado
Das indianas gentes bellicosas:
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades generosas,
Hei de soffrer, que o Fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?

LXXV

Já quizeram os deoses, que tivesse
O filho de Philippo nesta parte
Tanto poder, que tudo submettesse
Debaixo do seu jugo o fero Marte:
Mas ha-se de soffrer, que o Fado desse
A tão poucos tamanho esforço e arte.
Que eu co'o grão Macedonio, e co'o Romano,
Demos lugar ao nome Lusitano?

LXXVI

Não será assi; porque antes que chegado
Seja este Capitão, astutamente

Lhe será tanto engano fabricado,
Que nunca veja as partes do Oriente:
Eu descerei á terra; e o indignado
Peito revolverei da Maura gente;
Porque sempre por via irá direita,
Quem do opportuno tempo se aproveita.

LXXVII

Isto dizendo irado, e quasi insano,
Sobre a terra Africana descendeo,

Onde vestindo a fórma e gesto humano,
Para o Prasso sabido se moveo:

E

por melhor tecer o astuto engano,

No gesto natural se converteo

D'hum Mouro em Moçambique conhecido,
Velho, sabio, e co'o Xeque mui valido.

LXX

E entrando assi a fallar-lhe a tempo, e horas
Á sua falsidade accommodadas,

Lhe diz, como eram gentes roubadoras
Estas, que ora de novo são chegadas:
Que das nações na costa moradoras
Correndo a fama veio, que roubadas
Foram por estes homens que passavam,
Que com pactos de paz sempre ancoravam.

LXXIX

E sabe mais, lhe diz, como entendido
Tenho destes Christãos sanguinolentos,
Que quasi todo o mar tem destruido
Com roubos, com incendios violentos:
E trazem já de longe engano ordido
Contra nós; e que todos seus intentos
São para nos matarem e roubarem,
E mulheres e filhos captivarem.

LXXX

E tambem sei, que tem determinado
De vir por agua á terra muito cedo
O Capitão, dos seus acompanhado;
Que da tenção damnada nasce o medo.
Tu deves de ir tambem c'os teus armado
Espera-lo em cilada, occulto e quedo;
Porque, sahindo a gente descuidada,
Cahirão facilmente na cilada.

LXXXVII

Andam pela ribeira alva, arenosa,
Os bellicosos Mouros acenando
Com a adarga, e co'a hastea perigosa,
Os fortes Portuguezes incitando.
Não soffre muito a gente generosa
Andar-lhe os cães os dentes amostrando:
Qualquer em terra salta tão ligeiro,
Que nenhum dizer póde, que he primeiro.

LXXXVIII

Qual no corro sanguino o ledo amante,
Vendo a formosa dama desejada,
O touro busca, e pondo-se diante,
Salta, corre, sibila, acena e brada:
Mas o animal atroce nesse instante,
Com a fronte cornigera inclinada,
Bramando duro corre, e os olhos cerra,
Derriba, fere, e mata e põe por terra:

LXXXIX

Eis nos bateis o fogo se levanta
Na furiosa e dura artilheria;

A plumbea pella mata, o brado espanta,
Ferido o ar retumba, e assovia:
O coração dos Mouros se quebranta;
O temor grande o sangue lhe resfria:
Já foge o escondido de medroso,
E morre o descoberto aventuroso.

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