Porém disto, que o Mouro aqui notou, E de tudo o que vio, com olho attento, Hum odio certo na alma lhe ficou, Huma vontade má de pensamento: Nas mostras, e no gesto o não mostrou; Mas com risonho, e ledo fingimento, Trata-los brandamente determina, Até que mostrar possa o que imagina.
Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem podesse á India ser levado: Diz-lhe, que o largo premio levarão Do trabalho, que nisso for tomado. Promette-lhos o Mouro, com tenção De peito venenoso, e tão damnado, Que a morte, se podesse, neste dia Em lugar de pilotos lhe daria.
Tamanho o odio foi, e a má vontade, Que aos estrangeiros subito tomou, Sabendo ser sequaces da verdade, Que o filho de David nos ensinou. Oh segredos daquella Eternidade, A quem juizo algum não alcançou! Que nunca falte hum perfido inimigo Áquelles de quem foste tanto amigo!
Partio-se nisto em fim co'a companhia, Das naos o falso Mouro despedido, Com enganosa e grande cortezia, Com gesto ledo a todos, e fingido. Cortaram os bateis a curta via Das aguas de Neptuno, e recebido Na terra, do obsequente ajuntamento, Se foi o Mouro ao cognito aposento.
Do claro assento ethereo, o grão Thebano, Que da paternal coxa foi nascido, Olhando o ajuntamento Lusitano Ao Mouro ser molesto, e aborrecido, No pensamento cuida hum falso engano, Com que seja de todo destruido:
E em quanto isto só na alma imaginava, Comsigo estas palavras praticava.
Está do Fado já determinado, Que tamanhas victorias, tão famosas, Hajam os Portuguezes alcançado Das indianas gentes bellicosas: E eu só, filho do Padre sublimado, Com tantas qualidades generosas, Hei de soffrer, que o Fado favoreça Outrem, por quem meu nome se escureça?
Já quizeram os deoses, que tivesse O filho de Philippo nesta parte Tanto poder, que tudo submettesse Debaixo do seu jugo o fero Marte: Mas ha-se de soffrer, que o Fado desse A tão poucos tamanho esforço e arte. Que eu co'o grão Macedonio, e co'o Romano, Demos lugar ao nome Lusitano?
Não será assi; porque antes que chegado Seja este Capitão, astutamente
Lhe será tanto engano fabricado, Que nunca veja as partes do Oriente: Eu descerei á terra; e o indignado Peito revolverei da Maura gente; Porque sempre por via irá direita, Quem do opportuno tempo se aproveita.
Isto dizendo irado, e quasi insano, Sobre a terra Africana descendeo,
Onde vestindo a fórma e gesto humano, Para o Prasso sabido se moveo:
por melhor tecer o astuto engano,
No gesto natural se converteo
D'hum Mouro em Moçambique conhecido, Velho, sabio, e co'o Xeque mui valido.
E entrando assi a fallar-lhe a tempo, e horas Á sua falsidade accommodadas,
Lhe diz, como eram gentes roubadoras Estas, que ora de novo são chegadas: Que das nações na costa moradoras Correndo a fama veio, que roubadas Foram por estes homens que passavam, Que com pactos de paz sempre ancoravam.
E sabe mais, lhe diz, como entendido Tenho destes Christãos sanguinolentos, Que quasi todo o mar tem destruido Com roubos, com incendios violentos: E trazem já de longe engano ordido Contra nós; e que todos seus intentos São para nos matarem e roubarem, E mulheres e filhos captivarem.
E tambem sei, que tem determinado De vir por agua á terra muito cedo O Capitão, dos seus acompanhado; Que da tenção damnada nasce o medo. Tu deves de ir tambem c'os teus armado Espera-lo em cilada, occulto e quedo; Porque, sahindo a gente descuidada, Cahirão facilmente na cilada.
Andam pela ribeira alva, arenosa, Os bellicosos Mouros acenando Com a adarga, e co'a hastea perigosa, Os fortes Portuguezes incitando. Não soffre muito a gente generosa Andar-lhe os cães os dentes amostrando: Qualquer em terra salta tão ligeiro, Que nenhum dizer póde, que he primeiro.
Qual no corro sanguino o ledo amante, Vendo a formosa dama desejada, O touro busca, e pondo-se diante, Salta, corre, sibila, acena e brada: Mas o animal atroce nesse instante, Com a fronte cornigera inclinada, Bramando duro corre, e os olhos cerra, Derriba, fere, e mata e põe por terra:
Eis nos bateis o fogo se levanta Na furiosa e dura artilheria;
A plumbea pella mata, o brado espanta, Ferido o ar retumba, e assovia: O coração dos Mouros se quebranta; O temor grande o sangue lhe resfria: Já foge o escondido de medroso, E morre o descoberto aventuroso.
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