Ó gente, que a natura Vizinha fez de meu paterno ninho,
Que destino tão grande, ou que ventura, Vos trouxe a commetterdes tal caminho? Não he sem causa, não, occulta e escura, Vir do longinquo Tejo e ignoto Minho, Por mares nunca d'outro lenho arados, A reinos tão remotos e apartados.
Deos por certo vos traz, porque pretende Algum serviço seu, por vós obrado: Por isso só vos guia e vos defende Dos imigos, do mar, do vento irado. Sabei, que estais na India, onde se estende Diverso povo, rico, e prosperado De ouro luzente, e fina pedraria, Cheiro suave, ardente especiaria.
Esta provincia, cujo porto agora Tomado tendes, Malabar se chama: Do culto antiguo os idolos adora, Que cá por estas partes se derrama: De diversos Reis he, mas d'hum só fóra N'outro tempo, segundo a antigua fama: Saramá Perimal foi derradeiro
Rei, que este reino teve unido e inteiro.
Porém como a esta terra então viessem De lá do seio Arabico outras gentes, Que o culto Mahometico trouxessem, No qual me instituiram meus parentes, Succedeo, que pregando convertessem O Perimal, de sabias e eloquentes; Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto, Que presuppoz de nella morrer santo.
Náos arma, e nellas mette curioso Mercadoria, que offereça, rica, Para ir nellas a ser religioso, Onde o propheta jaz, que a lei publica: Antes que parta, o reino poderoso Co'os seus reparte, porque não lhe fica Herdeiro proprio; faz os mais aceitos, Ricos de pobres, livres de sujeitos.
A hum Cochim, e a outro Cananor, A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta, A qual Coulão, a qual dá Cranganor, E os mais, a quem o mais serve e contenta. Hum só moço, a quem tinha muito amor, Despois que tudo deo, se lhe apresenta: Para este Calecut sómente fica, Cidade já por trato nobre e rica.
Esta lhe dá co'o titulo excellente
De Imperador, que sobre os outros mande. Isto feito, se parte diligente
Para onde em sancta vida acabe e ande: E daqui fica o nome de potente Samorim, mais que todos digno e grande, Ao moço e descendentes, donde vem Este, que agora o imperio manda e tem.
A lei da gente toda, rica e pobre, De fabulas composta se imagina: Andam nus, e sómente hum panno cobre As partes, que a cobrir natura ensina: Dous modos ha de gente; porque a nobre Naires chamados são, e a menos dina Poleás tem por nome, a quem obriga A lei não misturar a casta antiga:
Porque os que usaram sempre hum mesmo officio,
D'outro não podem receber consorte; Nem os filhos terão outro exercicio, Senão o de seus passados, até morte. Para os Naires he certo grande vicio Destes serem tocados, de tal sorte, Que, quando algum se toca por ventura, Com ceremonias mil se alimpa e apura.
Desta sorte o Judaico povo antigo Não tocava na gente de Samária: Mais estranhezas inda das que digo Nesta terra vereis de usança varia. Os Naires sós são dados ao perigo Das armas, sós defendem da contraria Banda o seu Rei, trazendo sempre usada Na esquerda a adarga, e na direita a espada.
Brahmenes são os seus religiosos,
Nome antiguo e de grande preeminencia: Observam os preceitos tão famosos D'hum, que primeiro poz nome á sciencia: Não matam cousa viva, e temerosos, Das carnes tem grandissima abstinencia: Sómente no venereo ajuntamento Tem mais licença e menos regimento.
Geraes são as mulheres, mas sómente Para os da geração de seus maridos: Ditosa condição, ditosa gente, Que não são de ciumes offendidos! Estes e outros costumes variamente São pelos Malabares admittidos:
A terra he grossa em trato em tudo aquillo, Que as ondas podem dar da China ao Nilo.
Assi contava o Mouro: mas vagando Andava a fama já pela cidade
Da vinda desta gente estranha, quando O Rei saber mandava da verdade: Já vinham pelas ruas caminhando, Rodeados de todo sexo e idade,
Os principaes, que o Rei buscar mandara O capitão da armada, que chegara.
Mas elle, que do Rei já tem licença Para desembarcar, acompanhado Dos nobres Portuguezes, sem detença Parte, de ricos pannos adornado: Das cores a formosa differença A vista alegra ao povo alvoroçado: O remo compassado fere frio Agora o mar, despois o fresco rio.
Na praia hum regedor do reino estava, Que na sua lingua Catual se chama, Rodeado de Naires, que esperava Com desusada festa o nobre Gama: Já na terra nos braços o levava, E n'hum portatil leito hua rica cama Lhe offerece em que vá (costume usado), Que nos hombros dos homens he levado.
« AnteriorContinuar » |