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Elle começa:

XXX

Ó gente, que a natura
Vizinha fez de meu paterno ninho,

Que destino tão grande, ou que ventura,
Vos trouxe a commetterdes tal caminho?
Não he sem causa, não, occulta e escura,
Vir do longinquo Tejo e ignoto Minho,
Por mares nunca d'outro lenho arados,
A reinos tão remotos e apartados.

XXXI

Deos por certo vos traz, porque pretende
Algum serviço seu, por vós obrado:
Por isso só vos guia e vos defende
Dos imigos, do mar, do vento irado.
Sabei, que estais na India, onde se estende
Diverso povo, rico, e prosperado
De ouro luzente, e fina pedraria,
Cheiro suave, ardente especiaria.

XXXII

Esta provincia, cujo porto agora
Tomado tendes, Malabar se chama:
Do culto antiguo os idolos adora,
Que cá por estas partes se derrama:
De diversos Reis he, mas d'hum só fóra
N'outro tempo, segundo a antigua fama:
Saramá Perimal foi derradeiro

Rei, que este reino teve unido e inteiro.

XXXIII

Porém como a esta terra então viessem
De lá do seio Arabico outras gentes,
Que o culto Mahometico trouxessem,
No qual me instituiram meus parentes,
Succedeo, que pregando convertessem
O Perimal, de sabias e eloquentes;
Fazem-lhe a lei tomar com fervor tanto,
Que presuppoz de nella morrer santo.

XXXIV

Náos arma, e nellas mette curioso
Mercadoria, que offereça, rica,
Para ir nellas a ser religioso,
Onde o propheta jaz, que a lei publica:
Antes que parta, o reino poderoso
Co'os seus reparte, porque não lhe fica
Herdeiro proprio; faz os mais aceitos,
Ricos de pobres, livres de sujeitos.

XXXV

A hum Cochim, e a outro Cananor,
A qual Chalé, a qual a ilha da Pimenta,
A qual Coulão, a qual dá Cranganor,
E os mais, a quem o mais serve e contenta.
Hum só moço, a quem tinha muito amor,
Despois que tudo deo, se lhe apresenta:
Para este Calecut sómente fica,
Cidade já por trato nobre e rica.

XXXVI

Esta lhe dá co'o titulo excellente

De Imperador, que sobre os outros mande.
Isto feito, se parte diligente

Para onde em sancta vida acabe e ande:
E daqui fica o nome de potente
Samorim, mais que todos digno e grande,
Ao moço e descendentes, donde vem
Este, que agora o imperio manda e tem.

XXXVII

A lei da gente toda, rica e pobre,
De fabulas composta se imagina:
Andam nus, e sómente hum panno cobre
As partes, que a cobrir natura ensina:
Dous modos ha de gente; porque a nobre
Naires chamados são, e a menos dina
Poleás tem por nome, a quem obriga
A lei não misturar a casta antiga:

XXXVIII

Porque os que usaram sempre hum mesmo officio,

D'outro não podem receber consorte;
Nem os filhos terão outro exercicio,
Senão o de seus passados, até morte.
Para os Naires he certo grande vicio
Destes serem tocados, de tal sorte,
Que, quando algum se toca por ventura,
Com ceremonias mil se alimpa e apura.

XXXIX

Desta sorte o Judaico povo antigo
Não tocava na gente de Samária:
Mais estranhezas inda das que digo
Nesta terra vereis de usança varia.
Os Naires sós são dados ao perigo
Das armas, sós defendem da contraria
Banda o seu Rei, trazendo sempre usada
Na esquerda a adarga, e na direita a espada.

XL

Brahmenes são os seus religiosos,

Nome antiguo e de grande preeminencia:
Observam os preceitos tão famosos
D'hum, que primeiro poz nome á sciencia:
Não matam cousa viva, e temerosos,
Das carnes tem grandissima abstinencia:
Sómente no venereo ajuntamento
Tem mais licença e menos regimento.

XLI

Geraes são as mulheres, mas sómente
Para os da geração de seus maridos:
Ditosa condição, ditosa gente,
Que não são de ciumes offendidos!
Estes e outros costumes variamente
São pelos Malabares admittidos:

A terra he grossa em trato em tudo aquillo,
Que as ondas podem dar da China ao Nilo.

XLII

Assi contava o Mouro: mas vagando
Andava a fama já pela cidade

Da vinda desta gente estranha, quando
O Rei saber mandava da verdade:
Já vinham pelas ruas caminhando,
Rodeados de todo sexo e idade,

Os principaes, que o Rei buscar mandara
O capitão da armada, que chegara.

XLIII

Mas elle, que do Rei já tem licença
Para desembarcar, acompanhado
Dos nobres Portuguezes, sem detença
Parte, de ricos
pannos adornado:
Das cores a formosa differença
A vista alegra ao povo alvoroçado:
O remo compassado fere frio
Agora o mar, despois o fresco rio.

XLIV

Na praia hum regedor do reino estava,
Que na sua lingua Catual se chama,
Rodeado de Naires, que esperava
Com desusada festa o nobre Gama:
Já na terra nos braços o levava,
E n'hum portatil leito hua rica cama
Lhe offerece em que vá (costume usado),
Que nos hombros dos homens he levado.

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