Como? da gente illustre Portugueza Ha de haver quem refuse o patrio Marte? Como? desta provincia, que princeza Foi das gentes na guerra em toda parte, Ha de sabir quem negue ter defeza? Quem negue a fé, o amor, o esforço e arte De Portuguez, e por nenhum respeito O proprio reino queira ver sujeito?
Como? Não sois vós inda os descendentes Daquelles, que debaixo da bandeira Do grande Henriques, feros e valentes, Vencestes esta gente tão guerreira? Quando tantas bandeiras, tantas gentes Puzeram em fugida, de maneira Que sete illustres condes lhe trouxeram Presos, afora a preza que tiveram?
Com quem foram contino sopeados Estes, de quem o estais agora vós, Por Diniz e seu filho sublimados, Senão co'os vossos fortes pais e avós? Pois se com seus descuidos, ou peccados, Fernando em tal fraqueza assi vos poz, Torne-vos vossas forças o Rei novo; Se he certo que co'o Rei se muda o povo.
Rei tendes tal, que se o valor tiverdes Igual ao Rei, que agora alevantastes, Desbaratareis tudo o que quizerdes, Quanto mais a quem já desbaratastes: E se com isto em fim vos não moverdes Do penetrante medo, que tomastes, Atai as mãos a vosso vão receio, Que eu só resistirei ao jugo alheio.
Eu só com meus vassallos, e com esta, (E dizendo isto arranca meia espada) Defenderei da força dura e infesta, A terra nunca de outrem subjugada: Em virtude do Rei, da patria mesta, Da lealdade, já por vós negada, Vencerei não só estes adversarios, Mas quantos a meu Rei forem contrarios.
Bem como entre os mancebos recolhidos Em Canusio, reliquias sós de Cannas, Já para se entregar, quasi movidos, Á fortuna das forças Africanas, Cornelio moço os faz, que compellidos Da sua espada jurem, que as Romanas Armas não deixarão, em quanto a vida Os não deixar, ou nellas for perdida:
Dest'arte a gente força, e esforça Nuno, Que com lhe ouvir as ultimas razões, Removem o temor frio, importuno, Que gelados lhe tinha os corações: Nos animaes cavalgam de Neptuno, Brandindo e volteando arremessões; Vão correndo e gritando á bóca aberta: Viva o famoso Rei, que nos liberta.
Das gentes populares, huns approvam A guerra com que a patria se sostinha; Huns as armas alimpam e renovam, Que a ferrugem da paz gastadas tinha; Capacetes estofam, peitos provam, Arma-se cada hum como convinha; Outros fazem vestidos de mil cores, Com letras e tenções de seus amores.
Com toda esta lustrosa companhia Joanne forte sahe da fresca Abrantes, Abrantes, que tambem da fonte fria Do Tejo logra as aguas abundantes. Os primeiros armigeros regia,
Quem para reger era os mui possantes Orientaes exercitos sem conto,
que passava Xerxes o Hellesponto:
Dom Nuno Alvares digo, verdadeiro Açoute de soberbos Castelhanos, Como já o fero Hunno o foi primeiro Para Francezes, para Italianos. Outro tambem famoso cavalleiro, Que a ala direita tem dos Lusitanos, Apto para manda-los e rege-los, Mem Rodrigues se diz de Vasconcellos.
E da outra ala, que a esta corresponde, Antão Vasques de Almada he capitão, Que despois foi de Abranches nobre Conde, Das gentes vai regendo a sestra mão. Logo na retaguarda não se esconde Das quinas e castellos o pendão, Com Joanne Rei forte em toda parte, Que escurecendo o preço vai de Marte.
Estavam pelos muros temerosas,
E de hum alegre medo quasi frias, Rezando as mães, irmãas, damas e esposas, Promettendo jejuns e romarias.
Já chegam as esquadras bellicosas
Defronte das imigas companhias,
Que com grita grandissima os recebem; E todas grande duvida concebem.
Respondem as trombetas mensageiras, Pifaros sibilantes e atambores; Alferezes volteiam as bandeiras,
Que variadas são de muitas cores. Era no secco tempo, que nas eiras Ceres o fructo deixa aos lavradores; Entra em Astrea o Sol, no mez de Agosto; Baccho das uvas tira o doce mosto.
Deo sinal a trombeta Castelhana
Horrendo, fero, ingente e temeroso: Ouvio-o o monte Artabro; e Guadiana Atraz tornou as ondas de medroso: Ouvio-o o Douro e a terra Transtagana; Correo ao mar o Tejo duvidoso;
E as mãis, que o som terribil escuitaram, Aos peitos os filhinhos apertaram.
Quantos rostos ali se vem sem côr, Que ao coração acode o sangue amigo! Que nos perigos grandes o temor He maior muitas vezes, que o perigo: E se o não he, parece-o; que o furor De offender, ou vencer o duro imigo, Faz não sentir, que he perda grande e rara, Dos membros corporaes, da vida chara.
« AnteriorContinuar » |