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Rua do Núncio. Reparei que a Casa COlOmbo e o Primeiro BarateirO eram de uma nitidez de primeiro plano e que aos poucos, em tal arejamento, os prédios iam fugindo numa confusão precipitada.

Talvez esse grande trabalho tivesse defeitos. Os dos “salões” de toda a parte dO mundo também Os têm. Mas quantos artigos admiráveis um crítico poderia escrever a respeito! Havia decerto naquele deboche de casaria o início da pintura moral, da pintura intuitiva, da pintura política, da pintura alegórica... Indaguei, rouco:

_ Quem fez isto?

_ O Paiva, pintor cuja fama é extraordinária entre Os colegas.

Voltei-me e de nOvO fiquei maravilhado. Aquele café não era café, era uma catedral dos grandes fatos. Na parede fronteira, entre ondas tremendas de um mar muito cinzento rendado de branco, alguns destroyers rasgavam o azul denso dO céu cOm projeções de holofotes cOlOssais.

_ Há coisas piores nos museus.

_ Mas isto é digno de uma pinacoteca naval.

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O amador, que e o dono dO botequim, e O artista cheio de

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imaginação, que e O Paiva, não se haviam contentado, porém, com essas duas visões do progresso: a avenida e o holofote. Na outra parede havia mais uma verdadeira orgia de paisagem: grutas, cascatas, rios marginados de flores vermelhas, palmas emaranhadas, um pandemônio de cores.

Quando me viu inteiramente assombrado, esse excelente amigo levou-me ao café Paraíso, na Avenida Floriano.

_ Já viste a arte-reclamo, a arte social. Vamos ver a arte patriótica.

_ E depois?

_ Depois ainda hás de ver os artistas que se repetem, a arte romântica e infernal.

A arte patriótica, ou antes regional, dos pintores da calçada é o desejo, aliás louvável, de reproduzir nas paredes trechos de aldeia, trechos do estado, trechos da terra em que o proprietário da casa, ou o pintor, viu a luz. No café Paraíso, o artista, que se chama Viana, pintou a cidade de Lourenço Marques, vista em conjunto, mas, como qualquer sentimento de amor naquela elaboração difícil brotasse de súbito no seu coração, Viana colocou à entrada de Lourenço Marques um couraçado desfraldando ao vento africano o pavilhão do Brasil. Dessas pinturas há uma infinidade _ e eu vi não sei quantas pontes metálicas do Douro ao atravessar algumas ruas.

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_ Entremos neste botequim, aqui a esquina da Rua da Conceição. Vais conhecer o Colon, pintor espanhol. Colon tem estilo: este painel é um exemplo. Que Vês? Uma paisagem campestre, arvoredo muito verde, e lá ao fundo um castelo com a bandeira da nacionalidade do dono da casa. É sempre assim. Há outros mais curiosos. O Oliveira completa os trabalhos sempre com cortinas iguais às que se usavam nos antigos panos de boca dos teatros. O trabalho é o abuso do azul, desde o azul claro ao azul negro.

_ Mas estás a contar os tiques de grandes pintores.

_ São parecidos. Eu conheço muitos mais: o velho Marcelino, que tem a especialidade de pintar os homens no pifão; o Henrique da Gama, o primeiro dos nossos fingidores, que faz um metro de mármore em cada cinco minutos; o Francisco de Paula, que adora os papagaios e faz caricaturas; o Malheiros, que reúne gatos, cachorros, cascatas e caboclos em cada tela. É o ideal da arte! São eles os autores dos estandartes dos cordões; são eles que enriquecem! Já entraste num desses ateliers, no Cunha dos PP, no Garcia Fernandes da Rua do Senhor dos Passos? Pois é como um desses studios da Flandres antiga, em que os grandes artistas

assinavam os trabalhos dos discípulos, e como se entrasse na grande manufatura da pintura assinada. Vamos ao Cunha.

_ Não, não, por hoje basta.

_ Mas pelo menos Vem admirar na Rua Frei Caneca 1660 famoso trabalho do Xavier.

_ O famoso trabalho?

Se os outros, que não eram famosos e não eram de Xavier, tanta admiração me haviam causado, imaginem esse, sendo de Xavier e sendo famoso. Precipitei-me num bonde, saltei comovido Como se me assegurassem que eu iria ver a Joconda de Da Vinci, e, quando os meus olhos sôfregos pousaram na Criação do pintor, uma exclamação abriu-me os lábios e os braços. Era simplesmente um incêndio, o incêndio de uma Cidade inteira, a Chama ardente, o fogo queimando, torcendo, destruindo, desmoronando a Cidade do vício. Tudo desaparecia numa violentação rubra de fornalha Candente. Seria o fogo sagrado, a purificar Como em Gomorra, ou o fogo da luxúria, o símbolo devastador das paixões Carnais, a reprodução alegórica de Como a licença dos instintos devora e queima a vida?

Xavier fora mais longe. Aquele mar de incêndio, aquele braseiro desesperado e perene era a fixação do fogo maldito da luxúria, era o fogo de Satanás, porque Satanás, em pessoa, no primeiro plano, completamente cor de pitanga, Com as pernas tortas e o ar furioso, abatia a seus pés, vestida de azul Celeste, uma pobre senhora.

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Esse último painel punha-me inteiramente tonto. Mas não e uma das grandes preocupações da Arte comover os mortais, comovê-los até mais não poder? Xavier comovia, eu estava comovido. Nem sempre é possível obter tanta coisa nas exposições anuais. O meu amigo leVou o excesso a apresentar-me _ Aqui está O Xavier.

o ilustre artista.

Voltei-me.

_ Os meus sinceros cumprimentos. Há sOpro romântico, há imaginação, há ardência nesta decoração, fiz com o ar dogmático dos críticos ignorantes de pintura.

Ingenuamente, Xavier Olhou para mim e, primeiro homem que não se julga célebre neste país, balbuciou:

_ Eu não sei nada...Isso está para aí...Se soubesse fazer alguma coisa de Valor até ficava triste _ só com a ideia de que um dia talvez a levassem do meu país...

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