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_ e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados _ o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

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A vida no seu feroz egoísmo e o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis ideias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome

no pé, no calcanhar.

_ Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenhote aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

E a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice, o grain de beauté, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais _ porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

_ Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres têm o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda _ a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os pendentifs d”arte e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada _ a

cavalhada da luxúria e do assassínio _, começa a gente a sentir uma ConCentrada emoção e a imaginar Com inveja o prazer humano, o prazer Carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma

figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

_ Quanto fizeste hoje? _ Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

Orações

_ Que está você a vender?

_ Orações, sim senhor.

_ Novas?

_ Uma nOva, sim _ a Oração dos nOve.

Era num canto de rua, por uma tarde de chuva. O pobre garoto, muito magrO, com o pescoço muito comprido, sObraçava O maço de Orações, a sorrir.

_ Mas, criatura, a oração dos nove foi desmoralizada!

_ E agora é que se vende mais. Olhe, eu hoje vendi quatrocentos folhetos. Só de Oração dos nove, trezentos e vinte cinco.

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Eu acredito nos prOdígiOs. E uma Opinião individual mas definitiva. Se a oração dos nove, depois de assustar toda a cidade e de incomodar o arcebispo, ainda continuava com um tão grande número de crentes, era porque tinha prodigiosas virtudes. Comprei a oração e estuguei o passo. Que é afinal uma oração? É um levantamento da alma a Deus com o desejo de o servir e gozar, e S. João de Damasco já a definia um pedido de coisas convenientes, com medo de que os fiéis pedissem também inconveniências. Aquele menino magro, naquela esquina de rua, era um dos insignificantes agentes desse tremendo micróbio da alma.

Si I ,on en croit les savants
Pour qui toute la Nature
N*est qu”un bouillon de culture

Mortel aux pauvres vivants.

Quantas orações andam por aí impressas em folhetinhos maus,vendidas nas grandes livrarias e nos alfarrabistas, exportadas para a província em grossos maços, ou simplesmente manuscritas, de mão em mão, amarradas ao pescoço dos mortais em forma de breve! Há nessa estranha literatura edições raras, exemplares únicos que se compram a peso de ouro; orações árabes dos negros muçulmins, cuja tradução não se vende nem por cinquenta mil réis; orações de pragas africanas, para dizer três vezes com um obi na boca; orações para todas as coisas possíveis e impossíveis. O homem é o animal que acredita _ principalmente no absurdo. Levei muito tempo a colecionar essas súplicas bizarras. Há mais de mil: de S. Bento, de Santa Luzia, de Santa Helena, Monserrate, S. João Batista, Milagre de Jesus

Cristo, Maria Eterna, Santa Bárbara, Menino Deus, Santa

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